Através do Espelho


Título: Através do Espelho
Autor: Jostein Gaarder
Editora: Companhia das Letras
Ano: 1993
Número de Páginas: 141

A literatura fantástica está no limiar entre o surreal e o magnífico. No surreal, rejeitamos tudo aquilo que está fora da nossa visão de mundo e consideramos como impossível e/ou inexistente; enquanto que no reino do Magnífico, tudo o que nos é diferente é aceito como comum ou banal tanto pelo protagonista quanto por nós desde o momento em que aceitamos o pacto ficcional (ao começar a entender como o mundo a obra literária funciona). Um exemplo literário que está no campo do magnífico é o mundo criado por Tolkien, onde tudo o que está nos livros (existência de elfos, anões, anéis mágicos, entre outras criaturas) é aceito como realidade dentro do mundo ficctício proposto. A fantasia, por sua vez, é uma estreita linha que está entre os dois reinos (surreal e magnífico), no qual pode haver uma indagação tanto por parte do protagonista quanto por parte do leitor sobre o que é mostrado: Isso é real? Isso pode ser real?

E é partindo dessa premissa que Jostein Gaarder me deu a primeira ficção fantástica de qualidade deste ano. Entregue às minhas mãos uns pares de dias atrás, comecei a leitura de Através do Espelho (I et speil, i en gâte, no original; 1993), e ela me surpreendeu com o passar das páginas. Embora o livro tenha do início ao fim uma línguagem infantil e didática, como já é característico das obras do autor, os temas abordados são mais profundos se lidos da maneira correta e provocam indagações. Embora possa ser uma iniciação à filosofia para pessoas mais jovens, o livro carrega mais profundidade para aqueles que já pensam sobre os assuntos que versados.

E, para o meu espanto, o autor torna um enredo que se passa inteiramente numa cama interessante do início ao fim. Cecília Skotbu, protagonista do livro, é uma menina de idade indefinida que possui uma doença em estágio terminal (que em muitas resenhas menciona-se ser câncer, embora eu não lembre de uma passagem que explicite a doença) e fica a maior parte do tempo na cama. Durante a trama, alternam-se a visita dos pais, avós, irmão mais novo e da enfermeira, que lhe aplica uma injeção para que melhore logo. Mas a visita mais interessante é sempre a do anjo Ariel.

No decorrer da trama, Ariel e Cecília conversam sobre questões de cunho filosófico. Falam sobre como é se sentir um ser humano, sobre os sentidos que eles possuem, sobre Deus e como ele enxerga tudo o que há no mundo. Enquanto o corpo de Cecília enfraquece mais por causa da doença, mais informações sobre o mundo espiritual ela vai juntando com Ariel, que também lhe ajuda a entender mais sobre a curta vida humana. Em troca, ele pede que ela lhe explique como é ser humano. Após as conversas com o anjo, Cecília anota em seu diário chinês seus pensamentos e depois o guarda debaixo da cama. Dentre as questões mais interessantes que eles tratam está a dificuldade em nos colocarmos no lugar d'outro ser para podermos entender como eles se sentem. Tanto Ariel quanto Cecília mostram essa dificuldade – que é bem óbvia, pois nosso entendimento está limitado ao que somos ou, entrando no clima do livro, ao reflexo do espelho. Para entender o outro, temos que sair de nós mesmos, mas, para isso, temos que nos entender antes.

Dada essa dificuldade em entender o que nos é diferente e à permanente vontade de entender os fenônenos da natureza, perrsonificamos fenômenos e outras entidades na tentativa de compreendê-los – e justamente por isso que nossa visão se limita ao reflexo do espelho, e não ao que está além dele. Tudo o que vemos é o nosso reflexo, como num espelho. É desta forma que tentamos entender todos os fenômenos da natureza e acabamos por criar Zeus, Ísis, Shiva, Watatumi, Deus. Com isso nós acabamos perdendo capacidade de perceber e compreender muito sobre outros elementos e seres. No livro, Cecília descobre o quão é difícil entender como um anjo se sente (na realidade, como ele não sente nada, já que ela está presa aos seus cinco ou seis sentidos), e que também eles não possuem cabelos encaracolados (nem pálpebras!). Em dado momento chega, enquanto conversa com Ariel, à conclusão de que o Deus que acredita existe, mas que está difundido em toda sua criação.

Embora não tenha necessariamente a ver com o livro desta resenha, devo comentar que essa percepção restrita por aquilo que somos e pela maneira como sentimos e percebemos o mundo resvala para todas as áreas, inclusive à literatura – H. P. Lovecraft criticou muito a personificação de seres d'outros mundo na ficção espacial.

Bom, e de onde vem o fantástico? Embora Cecília aceite em determinado momento que anjos existem, assim como Deus, ela permanece descrente durante parte do livro – o que caracteriza o limiar que falei anteriormente. Mais importante que isso, a dúvida sobre o real/irreal parece mais tangível quando penso nos leitores do livro. Em todas as resenhas sobre o livro que encontrei, e ao conversar com algumas pessoas que leram o livro, não se encontra nenhuma menção ao que falarei adiante; todos consideram que o anjo Ariel seja real dentro do mundo fictício que Jostein Gaarder contrói no livro. No entanto, o decorrer da trama tem indícios que sugerem o contrário. Aparentemente, Ariel nunca existiu se não na mente de Cecília (o que não é, necessariamente, inexistir), podendo ser a maneira como o corpo/inconsciente da menina formulou para fazê-la aceitar e compreender melhor o que estava lhe acontecendo e o que viria adiante. Sendo produto da imaginação ou do inconsciente de Cecília, ele existia dentro do mundo (ou dos sonhos) de Cecília, mas não na porção que não pertencia à garota (o que lhe era externo). Algumas das bases para essa teoria é o nome do anjo ser o oposto do vale bem em frente à casa da menina (Leira), falar sempre de assuntos que a menina dominava (como astronomia), aparecer sempre após que ela dormia. Mas o livro dá pouca margem para definir se o anjo é real apenas na mente de Cecília ou se para todo o universo fictício do livro – minha visão é um pouco mais cética, embora eu ache que tomar a existência de anjos como real apenas para Cecília atribua um valor literário e filosófico maior para o livro do que assumir que o anjo é real no universo. Se assumirmos que ele é produto da imaginação de Cecília, entramos numa discussão filosófica mais profunda do que aquelas mais obviamente expostas no livro: O que é real?

Daí parte um universo de outras questões que rondam o pensamento filosófico: o real existe independente da minha visão? O universo é restrito ao meu mundo? O próprio livro aborda estas questões, ao falar de sonhos.

“Depois de uma longa noite posso acordar e acreditar que estive em Creta; e de certa forma estive mesmo lá, pois no sonho eu acredito que estou no lugar onde se passa o sonho.” (página 96)


Além de ser um livro recheado de filosofia, o que é tão característico de Jostein Gaarder graças à sua formação como professor da disciplina, o autor nos presenteia com uma estética estonteante. A narrativa é extremamente delicada e apresenta cenas tocantes do início ao fim, e alguns personagens que, embora não possuam uma participação muito ativa no desenvolvimento da trama, são memoráveis (como a avó de Cecília). Embora pareça melancólico em uma primeira impressão, já que retrata o definhamento gradual de uma criança, que na sua inocência acha que ficará boa ainda no inverno para que possa brincar na neve, o livro possui uma aura própria que destoa da melancolia pura. A curiosidade e energia de Cecília permeiam o enredo todo, e fazem com que sua pequena jornada filosófica com o anjo Ariel não seja apenas melancólica, mas bela e compreensível, até o momento em que ela atravessa o espelho.

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