Rabbit


É como se fosse uma sexta-feira a noite peculiarmente cinematográfica. Uma sexta-feira que quase todos da minha geração já deve ter passado algum dia: bastante álcool sobre a mesa; pessoas novas com suas recentes relações se moldando através de conflitos e alianças; e algum grande drama por trás, seja lá de quem for. É no mundano que Nina Raine fez sua estreia como roteirista teatral em Londres, com sua hoje quase-famosa peça intitulada Rabbit, que permitiu seu rápido surgimento no cenário teatral inglês, com direito a algumas premiações.

Rabbit é a primeira peça da roteirista adaptada no Brasil, pela Companhia Delas, uma companhia teatral paulistana. Paula Weinfeld vive Bella, que está em seu aniversário de 29 anos e que, pela primeira vez, resolve reunir os vários compartimentos de sua vida, centralizados na figura de vários amigos. A personagem vai costurando seus dramas pessoais, catalisados por velhos relacionamentos e desapontamentos, em conversas com seus amigos. Assim, destrincha as relações mal resolvidas com Richard (Jeronimo Martins), um protótipo arrogante de macho alfa, cuja profissão de Promotor já não o agrada, e Tom (Ricardo Estevam), um rapaz mais compreensivo que, embora envolvido com as próprias escolhas ruins, foi parte dos jogos de poder de Bella. As amigas fazem pouco cenário para esses conflitos, mas dão vida adicional à peça. Sandy, interpretada na adaptação por Fernanda Castello Branco, é extremamente egocêntrica e enérgica; enquanto Emily (Lilian Damasceno) traz ao palco uma personagem mais contida e atenta aos problemas da protagonista.

Se, por um lado, Rabbit parece se passar em um lugar comum, quase como se estivéssemos assistindo a um chick lit atual ou a uma péssima comédia romântica de luta entre os sexos, certamente não se limita a esse espaço. Mergulhando mais fundo nos personagens, entre conversas e memórias retratadas em paralelo, a história mostra além das relações superficias que a nossa geração instituiu. As memórias começam a retratar os conflitos entre Bella e seu pai (Erick Lenate, também diretor geral e cenográfico), mas que ao longo da peça vão se tornando em memórias agradáveis e tocantes de pai-filha, enquanto no mundo real, Bella vai aceitando a ideia da morte premente do pai, hospitalizado devido ao câncer.

Apesar do drama vivenciado pela personagem e pelas relações conturbadas que vai tecendo, o auge da peça para mim foi a ideia que Emily trouxe à tona quando explicou calmamente para os recém-amigos que o cérebro constrói e reconstrói as memórias, e muitas delas se interconectam. Daí podemos tentar observar mais atentamente as interconexões estruturadas por Nina Raine, quando fatos vividos no bar reavivam a relação de Bella com o pai, interpretada ali mesmo, em meio à cena, como memórias da protagonista. A busca da Companhia Delas para mostrar a conexão prismática entre o real e a memória ficou encantadora - em dado momento Bella grita com os amigos e, de repente, eles paralisam em fotografia; e os gritos se voltam ao pai. Assim, essas interconexões trazem cenas espetaculares ao palco e que foram espetacularmente traduzidas nas peles de Julia Ianina e Eric Lenate; em especial a cena final, quando vemos o pai encontrar o olhar infantil (e descrente) de Bella a lhe pedir socorro por causa de um monstro no quarto e, logo depois, os dois a brincarem.

Entre outros acertos da peça, estão as produções cenográficas e de luz que, juntas, criam um cenário moderno e criativo. Em especial porque a parte majoritária das cenas se passa em uma piscina de bolinhas, que se assemelha à vivência da nossa geração, "que se diverte e sofre, como numa imensa piscina de bolinhas", segundo Eric Lenate; e que, para mim, traz a conotação das lembranças numa mesma sala, todas interconectadas, onde o movimento de uma causará indubitavelmente o movimento d'outra. Para mim, ficou a dúvida se a piscina de bolinhas fez parte da adaptação do grupo ou se faz parte da montagem original de Nina Raine. Apesar dos inúmeros acertos da adaptação, gostaria de destacar que o tom caricata dos personagens me incomodou no início da peça, mas que, ao desenrolar da trama, a caricaturização se tornou cada vez menos importante.

Rabbit é, sem dúvida, um must see. A peça ficará em cartaz até domingo 21/12 na Caixa Cultural do Rio de Janeiro, às 19 horas. A entrada inteira está custando R$ 15 e as portas fecham exatamente às 19 (ou seja, não se atrasem).

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