Archive for setembro 2012

Adeus, você


Estou repleto de despedidas, para todos. Minha vontade frequente de me desligar de tudo que já conheço e me conectar a tudo que há de novo, de desconhecido, escondido por entre cidades e pessoas nunca vistas, pisadas, vividas. Uma criança - não vou muito longe disso, com essa curiosidade que me devora de dentro para fora, indestrutível.

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Retrato ao Amanhecer



            Acordei meio confuso, sem saber bem onde a realidade começava e terminava, e completamente em polvorosa por causa dos meus sonhos sempre tão fantásticos e às vezes aterrorizantes. Ainda não tinha aberto os olhos quando ouvi a respiração suave ao meu lado. Então aquilo tinha sido real – e o primeiro sorriso daquele novo dia cobriu meu rosto como se tudo fosse felicidade.
            Abri os olhos e continuei imerso na escuridão, já que o sol ainda não tinha dado a graça de sua companhia. Enquanto meus olhos se acostumavam à pouca claridade dos postes da rua que as cortinas de tom pastel deixavam entrar no quarto, virei de lado e fiquei observando o homem deitado ali, provavelmente tendo fantasias tão loucas quanto as que eu estava tendo segundos atrás. Aos poucos comecei a enxergar os contornos de seu corpo de ombros largos e pernas grossas por causa dos esportes frequentes – tudo nele era tão erótico, quase pornográfico! Até sua barba mal feita que lhe dava um aspecto ainda mais masculino.
            Aproximei minha mão do seu peito, mas não lhe toquei. Sabia que se eu começasse ali, dificilmente conseguiria parar. Pousei-lhe um beijo rápido na bochecha e me afastei, com medo de ficar preso ali pela eternidade, sem jamais conseguir me desvencilhar dele. Levantei e fui até o banheiro do meu quarto. Me olhava no espelho enquanto escovava dentes, observando algumas pequenas falhas no rosto – não, não vou me ligar nelas. Já estou farto desse meu narcisismo.
             Voltei ao quarto e abri um pouco as cortinas, o suficiente apenas para eu me encostar à janela e ficar observando o mundo lá fora. Sempre acordei cedo, antes mesmo de amanhecer. Foi uma mania que adquiri quando morava com meus pais e meus irmãos mais novos muitos anos atrás. A partir das seis horas da manhã tudo era tão caótico, cheio de gritaria sobre o pagamento de contas, choro de criança que não quer tomar banho nem ir pra escola. Tudo turbulento demais para mim. C’était trop turbulent!
            E foi assim que comecei a acordar cedo, no mesmo instante que todos ainda estavam imersos de sonhos ou apenas começando a dormir. A casa era finalmente um recanto de solitude. Eu podia andar pelos corredores pensando nos personagens que lia nos velhos livros da biblioteca do meu avô. Imaginava o que eu faria naquelas situações, das mais aterradoras histórias de horror cósmico de H. P. Lovecraft até os romances de Jane Austen. Ah! Como eu aproveitei aquela solidão intensamente!
            Continuei com o hábito mesmo quando fui morar longe, noutro estado, longe dos meus pais, irmãos e amigos. Mas não por causa deles. Percebi que era bom acordar antes do mundo e lhe ver apertando seu botão de start algumas horas depois, com o sol a aparecer no céu e os pássaros começando seus cantos desesperados. Tenho feito isso desde então, e muitos dos meus ex-namorados achavam estranho que eu apreciasse tanto a solidão assim. Um deles - aquele cheio de neuroses, devo dizer – costumava dizer que era porque eu não gostava o suficiente dele e que preferia estar longe. Alegava me amar. Duvido disso.
            Preciso dessa calmaria no início do meu dia para poder me expandir e pensar, sem dúvida alguma. Mas é tão difícil achar alguém que se encaixe perfeitamente nessas nossas pequenas manias, e ainda nos enlouqueça na cama e nos conforte e suporte nos momentos difíceis. É árdua essa tarefa de achar um companheiro e muitas vezes acreditei que jamais encontraria, pois preferia ter apenas a mim do que aceitar menos do que o grande amor.
Naquele momento em que eu pensava sobre todas essas coisas de amores e futuro, os pássaros começavam a cantar e voar de uma direção para outra, bem agitados. O sol começava a surgir por detrás uma grande árvore de formato estranho por entre as árvores. Abri a janela e respirei aquele ar único, ainda sem toda a fumaça que os ônibus e carros ficam soltando enlouquecidamente ao longo do dia. Solidão, tão bela – mas sei que a partir de um momento cansa. Aliás, o que me traz a felicidade é o equilíbrio perfeito dum e doutro, com pequenas margens de erro. Um pouco de solidão pela manhã para abstrair, um pouco mais tarde para ler e escrever, e um mundo de amor e paixão.
Quando ficar sozinho ali à janela já me cansava, o corpo de Guilherme me abraçou pelas costas. Bom dia, amor – ouvi, naquela sua voz aveludada, que eu só podia imaginar pertencer a deuses gregos ou romanos. Seu corpo quente por causa do sono encostava diretamente em minha pele e sua respiração sobre o meu pescoço me deixou arrepiado, desejoso. Virei o rosto e lhe dei um beijo. Perfeição. No exato instante em que a solidão já deixava de me agradar ele chegou a mim, e finalmente me pareceu que eu poderia ter os dois, tudo o que eu poderia querer para a minha vida. Sem ser sufocado a todo instante, sem pressão – os dois livres e querendo estar ali plenamente.
- Vamos ter um futuro maravilho, sabias?
- Vamos começar esse futuro daqui trinta segundos, então?
- Como vamos fazer isso?
- Vamos para debaixo daquele lençol ali e fazer coisas maravilhosas lá – e me arrastou em direção à cama, preso num abraço cheio de calor e desejo, com sua barba roçando a minha pele. E antes de ir fechei a janela, não para a rua, mas à solidão completa, apenas para talvez lhe abrir novamente durante o próximo amanhecer.

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Ficção vs Realidade: A Rosa Púrpura do Cairo



“E a coisa mais certa de todas as coisas
Não vale um caminho sob o sol”
(Caetano Veloso – Força Estranha)

            Imagine-se aprisionado numa vida deplorável, com uma pessoa que não faz nada além de lhe explorar até os limites em prol de seus desejos pequenos e egoístas e sem possibilidade de seguir adiante, de modificar o estado. É nesta situação que se encontra Cecília (genialmente interpretada por Mia Farrow), protagonista de A Rosa Púrpura do Cairo (Woody Allen, 1985) abusada por seu marido que passa o dia jogando e bebendo e com outras mulheres, enquando ela trabalha para manter a casa – tendo como cenário de fundo tempos de depressão econômica.
            É nesta atmosfera dolorosa, já tão própria do ser humano, que Cecília se mostra apaixonada por filmes, indo inúmeras vezes ao cinema e sabendo de tudo o que acontece nos filmes e na vida dos atores. O mundo ficcional que ela encontra no cinema acaba se tornando um ponto de partida para fugir de sua realidade degradante, transtornada por um marido ausente e por uma vida banal.
Neste cenário onde o desenvolvimento tecnológico tem influenciado cada vez mais a substituição da realidade pelo ficcional ou ainda a hibridização desses dois domínios (real vs irreal), estes processos culminam na ficcionalização/desrealização do mundo quando Tom Baxter (interpretado por Jeff Daniels) atravessa sua dimensão irreal (filme) para a dimensão real, motivado por sua paixão por Cecília. Ao longo do filme, Cecília se vê confrontrada com as escolhas entre o real e o irreal, onde é forçada a tomar uma decisão – no caso, pela realidade, que termina num final melancólico.
Diante todo esse enredo, fiquei surpreso (e decepcionado) ao encontrar várias críticas e resenhas comentando exclusivamente o papel da metalínguagem e/ou sobre o poder do cinema na felicidade das pessoas. Pareceu-me incomum que ninguém tenha suscitado uma discussão bem mais interessante, a meu ver, erigida nessa batalha apocalíptica que estamos vivendo: realidade vs ficção. Onde surgem casos, esporadicamente, de pessoas que morreram de fome por não conseguiram se desgrudar do mundo ficcional; onde a vida social/natural é relegada ao segundo plano para dar prioridade ao virtual – que, convenhamos, não passam de uma cópia infiel; onde o primeiro-ministro de uma grande nação comenta publicamente que o problema de novos empregos é não sobrar tempo para ler quadrinhos.
A irrealidade pode suprir de maneira quase total as necessidades individuais e fornecer possibilidades de evasão e de sentidos e possibilidades, como pode ser visto quando Cecília abandona o cinema com Tom, recém-saído das telas, e vivem uma paixão pelas ruas da cidade. Essa mesma vantagem do ficcional pode ser vista noutras obras, como, por exemplo, Jogador nº1 (escrito por Ernest Cline); ou mesmo em referência a quase todos de minha geração, Harry Potter e a Pedra Filosofal (J. K. Rownling), naquele inesperado encontro de Harry com o Espelho de Ojesed.
Depois de toda a confusão da fuga do personagem, quando os outros ficam confusos e perdidos em suas ações dentro do filme, que a imprensa se dá conta do acontecimento e começa a cercar o lugar. Nas diversas discussões, quando um dos outros personagens alega querer sair das telas também, é que se ouve uma das melhores (se não a melhor) fala do filme:
“The real ones want their lives fictional,
and fictional ones want their lives real.”
            É perceptível a decepção de Cecília ao se deparar com detalhes de sua ficção que veio em fuga à realidade, tal qual seus conceitos pequenos sobre discussões filosóficas ou seu senso completamente impraticável e inadequado ao mundo que os cerca. Torna-se óbvio que a ficção não pode assumir o lugar de algumas das características próprias do indíviduo e emergentes do sistema que juntos formamos, como o ato de pensar e nossas relações que formam o todo. É isso que a personagem percebe, abrindo mão de seu personagem fictício por um personagem real que lhe promete uma mudança inesperada em sua vida, à qual ela se joga inteiramente. Mas, deixada de lado por este último, a personagem parece voltar ao comportamento psicótico de antes, entregando-se novamente à sétima arte, abalada por ter sido enganada.
            Ao contrário das resenhas que li sobre o assunto, a cena final não demonstra a esperança da personagem ao ver mais um filme e visualizar possibilidades futuras. É interessante ver que ela apenas volta ao comportamento de aceitação da realidade e fuga completa da realidade à ficção. Percebe-se que Cecília foi completamente feliz apenas nas relações com o mundo real, representado pelo ator hollywoodiano que vem para resolver a situação do personagem fictício fugitivo, pois este entende as necessidades práticas do mundo e ainda assim lhe permite a perspectiva de um futuro melhor: ao mesmo tempo se conformando com a realidade, mas disposto a modificá-la em prol de sua melhoria. O que demonstra a cena final é o retorno ao seu comportamento de negação da realidade para viver na ilusão, onde já não era feliz antes – senão jamais teria se entregado a outros caminhos, possibilidades.
            Não obstante, certamente não sou contrário às fugas da realidade. Pessoalmente, acredito que um equilíbrio seja necessário, onde não siga nem o extremo de submissão completa nem de negação absoluta.

“Não faz bem viver sonhando
E se esquecer de viver,
lembre-se.”
(Harry Potter e a Pedra Filosofal – J. K. Rowling)

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I - O Orfanato Formoso



            Godó, apelido pelo qual a maior parte das crianças do orfanato chamavam aquele menino de cabelos negros em cuia que nem de índio desde que se lembravam de o conhecer, sempre quis voar. Achava muito legal a ideia de estar passeando por entre as nuvens e ainda poder ver de lá de cima todas as coisas pequeninhas embaixo – tudo muito minúsculo, que nem formigas. Os pássaros devem ter a vida mais legal do mundo, costumava dizer para quem quisesse ouvir, eles podem ficar o tempo que quiser voando por aí e se não gostam de um lugar só voam pra beeem longe.
            Dona Isadora, a diretora do orfanato, era quem não gostava nadinha de ouvir essas lenga-lengas (como ela mesma dizia) sobre voar e ir pra longe, afinal podia dar imaginação demais pras crianças e outra sorte de ideias inconcebíveis – mas as crianças nem sabiam o que significava essa palavra aí, inconcebível, e achavam ter algo a ver com poder voar ou fazer mágicas. Mas nem fazia diferença, porque todos eles adoravam ouvir as “lenga-lengas” do Godó até altas horas da noite, muitas vezes escondidos em algum compartimento da grande casa e ouvindo a história que ele contava bem baixinho pra que ninguém mais acordasse.
            Uma vez por semana eles marcavam de se encontrar logo depois das 10 da noite, quando Dona Isadora já estava em seu quarto dormindo. Os grupos saíam de seus quartos o mais silenciosamente possível e iam ao lugar marcado, toda semana um espaço diferente daquele usado na semana anterior – algumas vezes o encontro era até no escritório da Diretora, só pra aumentar a sensação de perigo quando as histórias eram desse tipo.
E, essa semana, Godó tinha marcado exatamente no escritório dela.
Manu, uma menina loira que falava pelos cotovelos e estava sempre correndo com os meninos, foi a primeira a sair do dormitório das meninas. Ela tinha um gosto por aventura maior que as outras garotas e sempre ia primeiro nessas coisas - pra checar o território, costumava dizer em voz alta e cheia de coragem às outras. Neste dia, saiu do quarto exatamente às 10:05 e deu uma volta rápida pelo segundo andar sobre as pontas dos pés, fazendo o mínimo de barulho possível, para verificar se a diretora realmente já tinha ido dormir. Depois voltou e deu uma batidinha na porta do quarto das meninas e dos meninos. Quando a porta se abriu para as crianças saírem, ela mesma saiu correndo para ser a primeira a chegar ao escritório.
Manu entrou com o sorriso aberto no escritório, mas logo murchou: Godó já estava lá, sentado na grande poltrona de couro da diretora, mãos cruzadas sobre a mesa que nem a mulher fazia quando ralhava com algum dos órfãos.
- Mas ora essa, estamos novamente correndo pela Grande Casa altas horas da noite, srta. Manuela? – Imitou o tom autoritário de Isadora, mas logo caiu na risada ao ver a cara de irritação de sua pequena companheira.
Tinha um apreço especial pela menina, mesmo ela sendo bem mais nova que ele. Enquanto ele já tinha 12 anos completos desde novembro passado, ela tinha 6 anos e meio. Tratava-a como a uma irmãzinha. Vezemquando ela quebrava alguma coisa e ele assumia a culpa sem que ela soubesse, só pra não brigarem com a menina. Semana passada tinha sido o caríssimo vaso chinês do Salão de Entrada doado por uma família riquíssima que adotara uma criança três meses antes e estavam felissísimos juntos.
O vaso ficava na mesinha de canto perto da porta que levava à cozinha e Manu estava correndo pelos corredores e se esqueceu completamente que tinha algo ali. Resultado: vaso quebrado e Isadora passando horas intermináveis ralhando com ele coisas tal “como um moleque desse tamanho ainda fica correndo por aí?!” e “inadmissível que depois de tantos anos aqui você ainda não se comporte”, e tudo isso enquanto o encarava por sob seus oclinhos desgastados com aqueles olhões enfurecidos.
- Não vale! Você sempre chega primeiro! E nem avisa pra ninguém que a bruxa velha – maneira carinhosa dos pequenos se referirem à Isadora em sua ausência – já foi se deitar! – e se danou a resmungar. Mais cedo eles tinham apostado o chocolate do almoço de sábado quem chegava primeiro no encontro e, se tinha uma coisa que Manu detestava do fundo do seu coração, isso era perder chocolate.
As outras crianças iam chegando aos poucos e ficavam rindo dos resmungos de Manu. Com a exceção de Jamilly, é claro. Ela não era de rir muito por causa dessas piadas e brincadeiras – na verdade, ela não ria de quase nada, exceto, talvez, de ouriços cacheiros, pois os achava extremamente engraçados. Quero dizer, até falar alto aquele nome a fazia rir.
O-u-ri-ço-ca-che-i-ro.
Mas, em geral, Jamilly era uma criança muito séria. Vivia escondida atrás de alguma coisa: às vezes atrás de algum grande livro de capa dura tão pesado que mal podia carregar e outras atrás de seus grandes óculos de aros redondos com o qual costumava olhar pras formigas e pros besouros. Mesmo que não fosse lá muito simpática, ela era uma das melhores amigas de Godó, até porque estava no Orfanato Formoso por tanto tempo quanto ele, ou até mais (ninguém sabia bem dessas coisas, pois os registros nunca eram mostrados pras crianças – inclusive, os registros começaram a ser chamados de Arquivos Obscuros pelas crianças depois de uma história particularmente tenebrosa que Godó contou dois anos antes).
Jamilly ainda abriu a boca pra começar a brigar com o menino por ficar pegando no pé da pequena, mas ele logo percebeu a disposição dela de arrumar uma longa discussão sobre o assunto e fez todo mundo se aquietar dizendo que ia começar a história do dia. Sabia que não ia fugir dela no outro dia, mas não escutar na frente de todo mundo já era bom o suficiente.
- Hoje eu vim contar pra vocês a história dum sonho que eu tive anteontem. Bom, tudo começou quando um grupo de heróis ouviu falar de uma lenda antiga, originada antes mesmo dos templos gregos ou egípcios. Essa lenda dizia que havia um objeto escondido no mundo que traria imenso poder ao seu usuário, mas que foi muito bem escondido por Gregóriles, o mais grandioso mago de todos os tempos, famoso por vários e vários motivos, como ter descoberto como usar a energia dos sonhos na magia da época. Uma das heroínas, Jenny, muito inteligente que era, percebeu que o objeto tinha sido escondido do mundo para que não caísse nas mãos erradas e que era melhor que assim permanecesse. Explicou para os outros que, por exemplo, se a Rainha dos Vales Obscuros conseguisse por sua mão nesse objeto mágico, provavelmente ela traria muita infelicidade para o resto do mundo com suas vontades sombrias.
- Mas a rainha não sabia de nada, né? – Perguntou Manu, que já tinha parado de resmungar fazia um tempo e agora ouvia absorta a história de Godó.
- Na verdade, Manu, ela sabia. Os heróis descobriram só por causa de um dos subordinados da Rainha, que o povo chamava de O Grandão. Apesar de ser assim tão grande que mereceu esse nome, ele era bem burrinho, tadinho. Algumas pessoas inclusive diziam que ele tinha caído numa poção do esquecimento quando criança e que ficou para sempre com sequelas do preparo mágico e que começou a ser chamado de O Grandão só porque numa noite de Festas Travessas ele esqueceu o próprio nome quando foi cantar no palco.
- Festas Travessas?! Que nome engraçado! – Riu-se Zézinho, um garoto mais novo que Manu que era tão pequeno, tão pequeno, que mais parecia um piolho.
- Costumava ser uma festa bem engraçada logo que surgiu, mas depois de um tempo não foi mais assim. Bandidos de todas as regiões, espiões, assassinos, brutamontes, bruxas da floresta, diretoras de orfanato, enfim, todo tipo de gente má foi começando a participar das Festas Travessas e ela acabou se tornando uma festa muito perigosa. Quando isso começou a acontecer, quase nenhuma gente de bem ia lá; e crianças, só se fossem trombadinhas ou espiãs das Terras Cristalinas, que era o caso dos heróis dessa história.
- Mas os heróis eram crianças?! – Perguntou Zézinho, surpreso.
Manu retrucou: Ué, e por que não? Eu sou criança e sou muito mais corajosa que muita gente grande por aí! E muito mais que vocês meninos, também.
- A Manu tem razão, Zé. E aquelas crianças eram, sem dúvida nenhuma, as mais bravas de todos os reinos. Tinham muitos boatos sobre elas, muitos inventados pelos povos e pelos bardos, mas muitos verdadeiros. Um dos boatos mais conhecidos sobre eles era de quando eles tinham enfrentado com muita perspicácia o velho Lorde Andrew Cantos, que queria separar as princesas Magda e Moira para sempre! Eles entraram no castelo dele fingindo ser entregadores de flores das montanhas geladas do Norte para o casamento e depois, fingindo serem missionários da igreja do santo casamento entre lordes e princesas conseguiram que o guarda abrisse o quarto de Magda, soltando-a assim de seu infeliz destino. O Lorde ainda tentou ir atrás deles, mas ninguém corria na floresta como eles, isso eu lhes digo, ninguém!
- O Lorde não tinha cães de caça?
- Na verdade, não. Mas ele tinha papagaios de caça, temidos em toda a região por suas bicadas ferozes e por deixar titica por todo lugar que passavam – um bando tempestuoso de aves malignas. E o bando foi atrás dos heróis e os encontraram nos confins da Floresta da Entrada, que na verdade não levava a lugar nenhum, pois parava às beiras de uma montanha gigantesca e inescalável. Porém não puderam fazer nada com os heróis, pois nenhum animal não-humano podia fazer algo de mal pras princesas Magda e Moira. E foi assim que eles conseguiram escapar do castelo e fugir das terríveis garras do... Lorde Andrew.
- E o que isso tem a ver com a Rainha dos Vales Obscuros?
- Ah, na verdade não tem nada a ver... Desculpa. Então, continuando: era dia de Festa Travessa e havia gente má pra tudo que é lado, mas lá estavam as crianças heroínas em seu intento de descobrir as coisas. O Misterioso, especialista em disfarces da equipe, engatou numa conversa com O Grandão, que acabou falando de sua nova missão. A Rainha queria que ele encontrasse e seus capangas fossem na igreja mais antiga da cidade e procurassem uma suposta câmara secreta, que um dia foi um dos diversos lugares que Gregóriles ficou em suas viagens, e assim procurassem qualquer coisa que ele tivesse deixado para trás.
- E como ela sabia que o mago tinha passado por lá?
- Na época ninguém descobriu como, mas depois de algum tempo descobriram que ela havia gasto muitos anos de sua vida aprisionando a alma de gente importante que morria por todos os reinos. Ela aprisionou a alma de estudiosos, magos, missionários, príncipes e reis nobres, sábios – e até de gente maligna, mas poderosa também, que tinha muito dinheiro e poder, porém pouca sabedoria.
- Nossa! Ela era uma pessoa muito má, né?
- Sem dúvida nenhuma, e mesmo assim tinha centenas de súditos, ainda que muitos aleguem que tudo isso se devia a maldições de dominação e ameaças. De qualquer forma, agora eles sabiam que ela estava na trilha do objeto lendário e que eles não poderiam ficar parados diante aquilo. Depois do término da festa, seguiram silenciosamente O Grandão e seu grupo de saqueadores pela cidade e se depararam com a grande Catedral de Nós Todos. Eles viram o grande grupo de malfeitores entrando no lugar, mas Jenny parou seus amigos heróis. Disse: “Eles erraram. Essa não é a igreja mais antiga dessa cidade. A igreja mais antiga da cidade foi demolida e só sobrou sua área subterrânea, que fica debaixo do palácio central.” Todos estavam admirados com o conhecimento dela e logo...
Toc-toc-toc-toc-toc-toc.
Um barulho estranho vinha do andar de cima. Parecia barulho de... Sapato!
Isadora provavelmente tinha acordado e andava no andar superior com seus saltos pretos. Todos ficaram com os rostos pálidos de medo e olhos arregalados, sem saber o que fazer. A porta do quarto da mulher se abriu rangendo e todos pareceram ficar mais pálidos do que era humano. Godó, que já estava acostumado a burlar uma regrinha aqui e ali, levantou-se de súbito antes que todos entrassem em pânico e saíssem correndo pelo grande casarão pra se esconder. Pôs o indicador em frente à boca para pedir silêncio aos outros e cochichou algumas coisas ao ouvido de Jamilly.
Foi até a janela e a abriu devagar, pra não fazer nenhum barulho. Saiu pela janela do escritório de Isadora e andou por um caminho de pedras, sendo guiado pela fraca luz que a lua permitia chegar até eles. Era meio difícil andar nas pedras descalço, mas continuou ignorando completamente a dor em seu pé. Chegou à árvore, pegou algumas das pedrinhas no chão e lançou a primeira contra a janela do quarto da diretora. Tá! Então a segunda. Tá! E se escondeu atrás da árvore quando a mulher ligou a luz do quarto e correu à janela para ver o que tinha sido aquilo.
Seu coração batia forte de tanto medo que estava. Achava que se alguém estivesse perto naquele instante poderia até ouvir as batidas. Viu a luz de uma lanterna passando pelo campo longe dele. Saiu de trás da árvore por uns segundos, viu que Isadora focava em outra direção e lançou mais uma pedra. Para ela não perder o interesse na busca – pensou.
Agora a lanterna procurava próximo demais da árvore onde ele se escondia, mas dificilmente ela lhe veria se ele continuasse ali agachado. A luz da lanterna passou várias vezes por ele, e então ele se virou para ficar olhando à janela do quarto das meninas, que dava naquela direção do grande terreno também. Depois de alguns minutos apreensivos, viu que a luz do quarto das meninas acendendo e apagando várias vezes – sinal que tinha pedido para Jamilly lhe mandar caso tudo tivesse dado certo e todo mundo já estivesse em seus quartos.
Aliviado já que os outros não estavam mais em perigo, mas ainda com medo, encostou-se de novo ao tronco e ficou esperando a lanterna desligar para ele voltar à sua querida e confortável cama. Enquanto esperava as luzes desligarem, ficou pensando no que os heróis encontraram na velha igreja e como continuaram a missão. Provavelmente tentariam encontrar o item mágico antes da Rainha e iriam acrescentando novos desafios no caminho para impedir que ela chegasse perto de encontrar. Imaginou uma conversa entre Jenny e o líder da expedição, e o grande casamento que um dia eles iriam ter depois de todas suas aventuras.
Nem se deu conta que tinha adormecido. Só ouviu os passos de alguém se aproximando e ao longe a silhueta dum homem gigantesco. Inferno! Ela chamou o Seu João! Seu João era o zelador e vigia do Orfanato Formoso e vivia numa casinha pequena dentro da propriedade. Era sem dúvida um dos maiores terrores das crianças, principalmente dos novatos, já que os mais velhos já tinham ‘a manha’ para enganar o homem. Os meninos, inclusive, faziam um ritual de entrada para os mais novos: o menino novo tinha que entrar na casa do Seu João e pregar alguma peça nele, como trocar seu açúcar por sal ou pregar suas sandálias com superbonde no chão.
Manu tinha sido a primeira garota a ser admitida no Clube da Guitarra Velha – nome dado por um dos membros-fundadores 7 anos antes por causa de uma velha guitarra, a qual na verdade era um violão, que os meninos tinham escondido no sótão e que brincavam de vez em quando com ela. Ela nem tinha pregado a peça no Seu João para entrar no clube, pois nem sabia da existência dele (como a maioria das meninas), mas mesmo assim foi chamada numa reunião de última hora e admitida nele. Afinal, ela tinha apenas entrado na casa do zelador enquanto ele dormia e pregado sua roupa do corpo ao colchão com um grande pregador de por papéis nos quadros de aviso. E de manhã lá estava ele, gritando: ALGUÉM ME AJUDA! TÔ PREGADO NA CAMA!
Ninguém nunca tinha visto Isadora tão enraivecida quanto naquele dia, nem mesmo naquela vez quando João Funga-Funga, adotado aos 8 anos por um casal de professores universitários e membro honorário do Clube da Guitarra Velha por seus memoráveis feitos, substituiu todo o creme de rosto da diretora por lama do velho lago do fundo do orfanato. As crianças mais antigas ainda lembravam com bastante humor como o resto da velha bruxa tinha ficado na ocasião, todo purulento e marcado de vermelho, que nem “cara de adolescente”.
Vejo agora que eu mesmo, o narrador dessa história, tenho a mesma mania do menino Godó, sempre pegando novos caminhos que se entremeiam em suas histórias só pra mostrar a beleza doutros lugares – mas bem, bem, melhor eu continuar o que antes contava e depois posso, entrelinhas, falar doutros acontecimentos do orfanato com as crianças mais astutas do país. De onde havíamos parado: lá estava o Seu João, agora não tão longe depois do tempo que Godó saía da confusão do recém-acordar e do choque que a situação lhe causara.
- Menino, não atreva a se mexer que eu tô te vendo!
- Me obrigue!
E lá se foi Godó, correndo desesperadamente em busca da própria salvação, o coração palpitando mais que de cavaleiros medievais diante dragões – o que, na opinião de muitos ali no orfanato, era quase a mesma situação que enfrentar as gigantescas lagartixas cuspidoras de fogo; e, na de outros, necessitava ainda de mais coragem porque depois do dragão não tinha nada pra enfrentar no caso do cavaleiro ser pego, e no caso do velho zelador, o capturado tinha ainda que enfrentar a velha Isadora e seus óculos e mãos cruzadas sobre a mesa, e aí qualquer um iria preferir mesmo o fogo das narinas reptilianas, sem dúvida nenhuma!
Haja corrida. Godó rodeava a grande casa enquanto Seu João mancava atrás dele, sendo deixado para trás a cada segundo pelo menino mais que serelepe, correndo que nem lebre fugindo de lince ou menino fugindo de beijo de tia na frente dos amigos. Um público já começava a ser visto pelas janelas e muitos começavam a gritar dicas sobre o que ele deveria fazer. Deu até pra ouvir direitinho a voz de Manu por entre as outras: “Joga o velho manco no lago! Joga!”
Burburinho por todos os lados, muitos comentando sobre o que aconteceria a seguir, mas a única realmente sã naquela papagaiada – papagaiada não, porque não tinha nenhum papagaio ali, meninada mesmo – era Jamilly. Essa já tinha falado que era melhor ele ter se entregado logo ou corrido pra se esconder na casa entre todos os outros, e como ele não fez nada disso, nem ficou pra ver o futuro do menino, pois ela mesmo já sabia qual era. Sentou em sua cama e puxou As caçadas de Pedrinho, que já terminava de ler depois de dois dias debruçada sobre o livro.
Levantou os olhos com um ar de “eu sabia” quando todo mundo parou de falar no mesmo segundo, menos Manu, que ainda deu um último grito de suporte: Te esconde antes que a velha venha! Mas, bom, já era tarde demais.
Isadora estava em frente da porta principal da casa. Os órfãos já a conheciam o suficiente para saber que a cara dela de alegria, de tristeza e de raiva eram as mesmas. Exceto quanto realmente irritada com algo. Olhos verdes esbugalhados, lábios contraídos até quase desaparecerem, rosto completamente congelado – alguém estava muito, muito ferrado quando se deparava com essa cena. Todos recuaram das janelas, exceto alguns dos amigos mais próximos do menino, que ainda ficaram pra ver a derrota de Godó e fazer caretas diante a cena.
Godó ainda nem tinha visto o que acontecia e corria rapidamente do zelador em direção da grande casa pra se refugiar entre os outros meninos. Seu rosto vermelho pelo esforço e suando como se tivesse jogado uma partida de futebol inteira como atacante, passou direto pela árvore onde se escondera antes e correu em direção ao gol – no caso, a casa que poderia lhe dar abrigo – mas deu de cara com aqueles grandes olhos esbugalhados de vilã de filme infantil.
- Caraca, agora o bicho pegou!
- Siga-me neste instante.
E ela falou de maneira tão fria e seca que ele já sabia o que ia acontecer. Todos sabiam, mas ninguém podia fazer nada. Mas tudo bem, ele já estava acostumado àquele tratamento desde criança e nem chorava mais. Seguiu a mulher por entre os corredores escuros e desceu as escadas até o grande porão, olhos abaixados e sem reclamações.
- Que droga. Como eu queria poder voar pra longe desse lugar que nem os passarinhos, bem pra longe dessa bruxa.

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