Archive for outubro 2012

Eu o amei



Eu o amei. Mas amei ainda mais a liberdade, aquele pedacinho de alma libertina – pior ainda, aquele meu eu de mulher traída, de mulher que quer se vingar. E me vinguei. Repetidas vezes, sem pensar, como animal acuado de unhas eriçadas e dentes à mostra.

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Pensamentos otimistas em dia de Natal



            Quando criança, Paulo sempre fora difícil.
            Era aquele tipo de moleque que pulava o muro do vizinho depois que escurecia e todos iam dormir só para fazer passos de lama (que ele jurava de pés juntos que não eram dele e sim de algum monstro). Pior ainda: ele tinha a mania de passar pelas casas das ruas paralelas apitando a campainha de alguma casa aleatória, e então se escondia e ficava ouvindo o morador xingando as traquinagens. Certa vez, num dia que percebeu que já tinha feito de quase tudo naquelas brincadeiras de criança travessa, deixou suas bolinhas de gude no corredor de sua casa na hora da moça que lá trabalhava limpar.
            - MOLEQUE MALDITO! NÃO AGUENTO MAIS!
            Ouviu os gritos histéricos da mulher, rindo-se escondido num dos armários para que seu pai não o encontrasse depois daquela; afinal, ela poderia ter se machucado bem mais do que aquela dorzinha nas costas que ficou durante o resto da semana.
            Mesmo assim, seus pais o mimavam. O enchiam de brinquedos modernos e, no natal, ganhava o número equivalente à sua idade de presentes – e isso até seus 15 ou 16 anos, quando os pais se deram conta que mimo demais não cria filho...
Desde criança se acostumara a barganhar os melhores presentes com os pais. Cartinha para o Papai Noel? Jamais! Nem acreditava nisso. Era uma longa lista de games e robôs caríssimos deixados em cima da mesa de trabalho do pai. E ainda tinha o olhar de desafio estilo “quero-ver-você-reclamar-que-tá-caro”.
Levado por essa irresponsável onda de ordenar e receber logo em seguida, foi um choque quando seus pais morreram num acidente ainda quando jovem, com 19 anos e alguns trocados. Rejeitado pelos poucos parentes que conhecia, foi obrigado a começar a trabalhar para sustentar ao menos teto num quitinete caindo aos pedaços nos cafundós-do-judas e um prato de comida no almoço.
Nem tinha como ser diferente, não é? Ele mesmo soube disso, quando pensou nos anos de adolescência rebelde que passou, gritando com todos e os pais lhe defendendo a todo custo. Ou quando, no final do terceiro ano do ensino médio, anunciou com todo orgulho na mesa de jantar que não ia mais estudar bosta nenhuma e que seria artista dali em diante. Bom, nunca soube bem o que era arte antes disso (e mesmo depois, arrisco-me a dizer), mas iria dar um jeito. Afinal, não deveria ser tão difícil assim tocar um violão ou jogar umas tintas aqui e ali ou escrever – até porque se um escritor já ficou famoso por tudo que escreveu até seus 20 míseros anos, ele ainda tinha muito tempo pra aprender a arte.
Mas nem foi dessa forma, também. Acabou por passar os dias assistindo televisão, fumando na esquina com uns caras e jogando pelada nos fins de semana, quando dava pros amigos mais antigos.
Acordar, trabalhar, comer, trabalhar, dormir, etc. Ah! Um namoro ou outro depois do expediente no supermercado e aos sábados. Domingo não. Domingo era exclusivo da cerveja com os amigos, daquele pagode na esquina e de futebol na televisão. Envolvido nisso tudo, nem viu o tempo passando.
Percebeu finalmente quando Bê (apelido do filho) nasceu. Sem mais nem menos ele já estava morando com a mãe do menino, Viviane, com quem costumava sair apenas às quintas, que era “pra ter espaço pra todas”, dizia aos amigos. Como foi entrar naquela enrascada? Mas nem era homem de reclamar das coisas, e nem tinha mesmo motivos pra isso. Viviane era direita e jeitosinha, o que todo homem poderia pedir a Deus. Seu filho, um anjo, diferente dele quando moleque.
Só se sentia mal por não poder dar brinquedos legais pro menino e aquele anel caro que sabia ser desejo de toda mulher, da infância à maturidade. Porém tempo para se lamentar sempre esteve em falta pra qualquer trabalhador. O jeito era seguir em frente, sempre em frente, senão amanhã não teria nem brinquedo legal, nem anel caro, nem feijão com arroz e bife.
E o natal já chegava pela sétima vez desde que Bê nascera. Comprara pro menino um carrinho bem elegante com tudo o que conseguira juntar – dois meses com apenas quatro carteiras de cigarro e cerveja só num domingo, porque era aniversário da Marcinha, amiga de longa data de Viviane. Quando chegou em casa com aquele presente, sentia-se plenamente feliz em dar ao seu filhote aquele presente. Sabia que o menino era super prestativo com todo mundo e comportado – até ficava na biblioteca da escola pública lendo quadrinhos sempre que podia. Aquelas traquinagens que ele mesmo fazia quando criança jamais aconteciam, ao menos não pelas mãos de Bê.
Muito comportado, o Bê. E gosta de ler, cê sabe? Gosta muito! Fica quase todo dia na escola lendo’, dizia sempre que lhe perguntavam sobre o filho, orgulhoso.
No meio da madrugada do dia que precede o natal, depois que todos haviam ido dormir, foi até a sala e deixou o único presente que pudera comprar embaixo da árvore de natal meio capenga que montara, comprada de segunda mão de uns vizinhos. Voltou ao seu quarto e se deitou ao lado da mulher.
Ploft!
Alguma coisa caiu na sala. ‘Mas que droga! Será rato?’, pensou, levantando-se imediatamente. Pegou a vassoura atrás da porta, pronto para dar umas boas batidas em cima do filho-da-mãe que estava andando pela casa a tamanhas horas da noite. Abriu a porta devagarzinho e observou.
Monte de xingamentos passaram pela sua cabeça, nenhum que eu vá repetir aqui, mas todos tinham a mesma ideia de “diacho”. Tinha uma criatura de um metro e meio parado em frente à árvore de natal. As roupas eram bem parecidas ao que sempre vemos por aí em figuras do Papai Noel. Mas aquilo não era o velhinho sorridente nem pelo... Bom, nem pelo diacho! A criatura era esverdeada e tinha uma pele estranha, escamosa, talvez.
Pensou seriamente em sair do quarto e acertar umas boas vassouras naquele ser d’outro mundo, mas frouxo do jeito que era e sem papai nem mamãe pra comprar um brinquedo-exterminador-de-criaturas-verdes, ficou parado atrás da porta com a vassoura na mão, pronto pra voar pro quarto do filho, pegá-lo e sair correndo com o menino nos braços. A mulher que se virasse – ela sabia correr mesmo.
Viu a criatura bisonha se curvando e mexendo em alguma coisa perto da árvore. Paulo se lembra perfeitamente do seu último pensamento: ‘Pelo amor de Deus, não leva o brinquedo do meu filhote!’. Isso foi segundos antes da criatura se virar em sua direção e mostrar aquele sorriso aterrorizante, de dentes maltratados, e olhos completamente negros constrastando com a pele verde reptiliana.
BUM!, desmaiou.

            No outro dia, Paulo só sentiu uns tapas leves em seu rosto. Viviane o arrastara para longe da porta e agora o acordava, sorriso largo e lágrimas nos olhos.
            - Olha, não sei como você conseguiu dinheiro pra isso, mas acho que nunca vi nosso filho tão feliz quanto hoje!
            Virou a cabeça para olhar pela porta, ainda deitado no chão, e viu seu menino no chão com vários presentes debaixo da árvore, parecendo extasiado. Nas mãos do filho, viria a saber depois, uma carta:

Caríssimo Breno,

É com prazer que venho lhe trazer alguns dos pedidos que fizeste pra mim por carta. Saiba que fiquei muito feliz por teres sido tão bom menino esse ano. Espero que continues sempre assim. Mande lembranças ao teu pai, que hoje recebeu o primeiro presente de mim também.

Que te divirtas muito,
Papai Noel.

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Dos tempos modernos


(Bruno saúda mestre Sêneca)


            Seria de se imaginar que depois de dois milênios tuas cartas trocadas com tantos outros viessem em auxílio da felicidade de todos os homens. Seria imaginável, até, que teus ensinamentos e questões sobre a vida tivessem se tornado banais por tão difundidos que seriam depois de tanto tempo.
            Sinto dizer que isso não aconteceu.
            Ainda vejo constantemente a fuga e a infelicidade de tantos. Todos eles querem fugir de suas cidades para conhecer novos lugares – pois lá, ah, lá eles serão felizes. Mal percebem que a corrida que tanto almejam fazer, ou que já o fazem, não é para sair de um lugar ruim e chegar num melhor, superior. É, em suma, para fugir de si. Fugir de uma alma atormentada, repleta dos males que tu vias por aí dois mil anos atrás – e sim, ainda os vejo por todos os cantos.
Glutões. Bêbados. Avaros. Soberbos. A sociedade não mudou muito nesse tempo que percorremos. Ainda há daqueles que falam de vícios como se virtude fossem. E todo o conhecimento que pensadores dos mais variados fizeram fluir é abandonado em bibliotecas vazias ou estantes ao fundo de lojas que mais vendem romances já sem profundidade. Não que eu não lhes dê importância, pois sabes que discordo de ti quando falas das artes frívolas. Afinal, tudo o que faz bem à nossa alma é devido, é direito.
De qualquer forma, todo o conhecimento que acumulamos ao longo de séculos é esquecido em livros pouco lidos. Os pais já não incentivam seus filhos a adquirirem a felicidade de partilha. A escola não ensina a pensar mais além de fórmulas e conceitos que poderiam ser vistos ali no dicionário. O governo cobra dos pensadores utilidade na ciência, e os pesquisadores vão atrás, dando-lhes mil e uma utilidades – mas pouco avançam no real entendimento do mundo, da natureza, do homem, da felicidade.
E foi isso que o mundo se tornou. Um abrigo de pessoas infelizes, que ora acreditam que a felicidade está em se esconder do mundo e adentrar mundos paralelos de (in)existência fantástica, ora a procuram nas esquinas, bares e ruas. Muitos ainda vão além. Viajam léguas atrás dessa bendita felicidade, a estados, países e culturas tão diferentes das que eles vieram. Para quê? Fogem apenas dos prédios que o cercam e levam consigo sua vontade de viver, suas convicções, dores, ânimo. E quando no lugar estrangeiro chegam e se veem abaixo de um novo céu, percebem-se infelizes tal como estavam. Mas, depois da experiência, tampouco percebem que se deve mudar o que carregamos dentro de nós, nossa visão de mundo, e não as ruas que andamos.
Se mudassem, estariam felizes onde quer que fosse. Poderiam sentir as amarguras que a natureza impõem e ainda assim sorrirem entusiasmados diante o mundo. E as viagens seriam mais do que fugas de si. Tornariam-se, essas, uma ampliação do eu; pois nós, humanos, não nascemos para sermos de uma ou doutra pátria. Nosso lugar é o mundo, mas nossa felicidade vem da alma. Só quando estivermos cientes disso é que seremos plenamente felizes.
Passa bem!


Obs.: O texto é uma referência ao livro Aprendendo a Viver, de Lúcio Sêneca, em formato de epístola direcionada a ele como homenagem aos seus escritos.

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