Título:
Trasgo
– Ficção Científica e Fantasia
Edição:
#1
Editor: Rodrigo
van Kampen
Autores: Hális Alves, Karen Alvares, Marcelo Porto, Claudia Dugim, Melissa de Sá
Ano: 2013
Não vivi nos anos 70 ou 80. Nasci alguns anos depois, numa outra
geração. Perdi o fervor de muitas das criações artísticas destas
duas décadas; inclusive as revistas literárias que marcaram a
literatura pós-moderna brasileira, tão diversificada quanto o povo
brasileiro é, trazendo-nos tanto contos alicerçados no trauma
histórico que lhes era tão recente quanto uma literatura mais
acrítica, característica do pós-moderno, trazendo-nos tanto contos
onde leitores e autores se uniam como meros espectadores dos eventos
descritos e quanto os memorialistas, onde o autor narrava sobre seu
ganho gradual de experiências. Por outro lado, estou vivendo a
expansão na publicação por e-books e o surgimento de vários
autores nacionais que optam por divulgar suas obras por estes meios
graças às suas facilidades e às imensas problemáticas que o
mercado editorial brasileiro vive.
É neste contexto que li a primeira edição da revista Trasgo –
Ficção Científica e Fantasia. A revista é coordenada por Rodrigo
van Kampen, também autor publicado em algumas antologias recentes.
Existem inúmeros canais virtuais de divulgação literária (blogs,
sites como o Recanto das Letras, etc.). Em alguns deles são
publicados mais de 50 textos novos diariamente (entre resenhas,
contos, poesias), mas quando tiramos um pouco do nosso dia para ler o
está sendo produzido sentimos a imaturidade da literatura da nova
geração. Essa literatura é geralmente de teor fraco e com pouco
trabalho pós-produção (pois é de extrema importância não apenas
escrever as ideias, e sim ler o produto final e trabalhar sobre ele
para alcançar os efeitos desejados), com textos cheios de erros
gráficos e com poder de divulgação.
Felizmente, nem tudo é assim. Entre esse mar de amadorismo no qual
estamos mergulhados, o que é perfeitamente natural e já serve como
um treinamento para aqueles que buscam aperfeiçoar a arte de
escrever, encontramos veículos de divulgação literária como a
revista Trasgo. Com a proposta de reunir o que há de melhor entre o
que está sendo produzido de contos na literatura nacional e dar uma
oportunidade de divulgação para os novos autores, a revista me
surpreendeu com o conteúdo escolhido para a edição piloto. Ela
traz cinco autores já publicados em antologias e que se mostram tão
diversificados dentro da ficção quanto as revistas dos anos 70 e
80.
O conto de abertura é do nordestino Hális Alves, que cria um
complexo cenário dieselpunk no
conto Ventania.
Neste mundo distópico, a humanidade passa por um período negro no
qual a maior parte da sociedade foi destruída e os sobreviventes
buscam se adaptar. O grupo acompanhado no enredo permanece em uma
construção que funciona através da força do vento e da corrente
do mar. Embora sua escrita não seja fluida e seja preciso atenção
para absorver tudo o que está sendo apresentado, o estilo narrativo
do autor é extremamente atraente. O auge do conto está nas cenas de
ação – descrições perfeitas nas quais conseguimos visualizar
perfeitamente o que acontece – e na descrição grotesca do bando
de humanos mutantes que estão no papel de antagonistas.
Azul, da autora Karen Alvares, não me encantou tanto quanto
o texto anterior. O início cria um suspense espetacular quando Nora,
a protagonista, sobe bêbada em um ônibus após uma balada. Embora
Nora seja uma personagem de um puritanismo irritante, que se faz
notar após a fuga depois de um beijo, isso se torna completamente
ignorável quando ela percebe que um homem a observa no ônibus.
Embora com medo, ela espera até o ponto que iria descer
anteriormente e, ao descer, o homem a surpreende e lhe amaldiçoa com
um mundo azul. Este terror urbano traz em suas melhores cenas a
rápida perseguição no ônibus e a obsessão que acomete Nora nos
parágrafos posteriores, mas o final, infelizmente, não surpreende,
ainda que esteja no escopo da personagem. Apesar das problemáticas
que apresentei, o conto merece ser lido pela imagem obsessiva que
evoca.
Marcelo Porto, o autor do terceiro conto desta primeira edição,
brinca com a história do Brasil e com os cenários paradisíacos do
litoral baiano em Náufrago. Ao ler o título, esperei algo
parecido com Relatos de um Náufrago (Gabriel García Márquez), mas
logo vi que estava enganado. Com um personagem corajoso encarnado num
“simples” historiador, Marcelo Porto nos traz para mais perto da
história da Bahia, que logo se mostra sagaz ao ter que lidar com uma
situação fantástica que o leva para o Brasil de séculos atrás e
a proteger, a custo da própria segurança, uma criança com a qual
trocara poucas palavras no início do conto. O mais interessante
nesta viagem no tempo é como ele se mostra cíclico quando Diogo (o
protagonista) se encara solitário, e náufrago, naquelas terras
antepassadas.
Gente é tão bom me divertiu do início ao fim. Foi um
prazer indescritível ler a narrativa irônica e recheada de humor
negro de Claudia Dugim. Seu estilo é direto, mas está longe de ser
simples. A personagem principal é uma antiheroína que se vê numa
situação surreal e apresenta opiniões mais surreais ainda, mas
divertidas para observadores externos e que vão direto ao ponto
crítico. Além do humor espetacular, a autora apresenta diversos
elementos criticáveis da sociedade contemporânea quando a
protagonista se vê em um acidente químico que faz com que as
pessoas tenham uma transformação mais do que fantástica.
“Poder
e dinheiro acobertam tudo. Não sai no jornal, em nenhum jornal, uma
notinha sequer — verdadeira. Acidente climático — e vamos por a
culpa na camada de ozônio que ela não revida, não tem advogado,
não processa ninguém.“
(Claudia Dugim)
Quando eu achava que não poderia ter mais um conto tão bom quanto
os anteriores, surge Melissa de Sá. Preciso dizer que eu estava
lendo por volta das 3 da madrugada, morto de sono – e o conto me
acordou e ainda pediu uma segunda leitura. A Torre e o Dragão
conta a história de uma princesa aprisionada na torre e o encontro
com um “quase príncipe” que veio lhe buscar. Os personagens da
trama são bem explorados e os coadjuvantes que aparecem são tão
interessantes quanto os principais – como a guerreira medieval que
luta para receber um título, que mesmo numa rápida aparição se
faz notar. Embora pareça mais um enredo bobo de princesa,
descobre-se ao caminhar do conto uma relação mais íntima entre
princesa e dragão. O final não surpreende, pois no meio do conto já
se torna óbvio o que acontecerá, mas também não deixa de agradar
aos fãs do gênero pela criatividade. Embora não seja a faceta
filosófica que seja abordada no conto, ele remete ao lobo e ao homem
d'O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse, que a princípio pensa que há
dois seres que o habitam de forma metafórica (um homem racional e um
lobo selvagem).
A edição piloto também traz imagens sensacionais de Filipe
Plagliuso, bem como entrevistas com os autores, permitindo-os
discorrer sobre seu processo criativo e bras. É assim que a edição
é fechada de forma magnífica sob a direção de van Kampen. A
revista é uma ótima pedida para qualquer amante da literatura
fantástica que queira uma boa diversão por um pouco mais de uma
hora.
E que venha a próxima edição!
Obs.: A revista pode ser lida pelo site Trasgo ou ser baixada em
formato e-book pelo mesmo endereço.