Archive for 2012

Nota sobre o antropocentrismo ficcional cósmico

Ou
(Os alienígenas também amam?)



            Quando finalmente Avatar chegou aos cinemas e se tornou um dos grandes sucessos de produção daquele ano não apenas por sua fotografia, mas também por seu enredo, alguns pensamentos começaram a germinar lentamente na minha cabeça. Tais pensamentos viriam a ser alimentados com a observação de obras fantásticas nacionais publicadas após o ano 2000, além da leitura extensa dos textos de H. P. Lovecraft, um dos expoentes do gênero horror na literatura do século XX.
            O filme monta um enredo em torno da existência de vida num planeta distante da Terra e dos seres inteligentes que ali habitam. Notadamente, os seres recém-descobertos pela humanidade possuem forma humanoide e muitas de suas relações com os outros seres e entre si (na estruturação da comunidade) são similares às nossas próprias. E é daí que surgem os grandes questionamentos desta nota: nossa estrutura física, psicológica e social é a única que pode dar certo para seres inteligentes? A única forma de vida adequada é a existente no planeta Terra?
            Tendo em vista que a fantasia tem como um dos principais objetivos, se não o maior de todos, criar a dúvida sobre a (in)existência de alguma faceta de seu enredo, pondo assim em cheque as noções sobre a realidade através das observações empíricas do mundo que nos cerca, o gênero fantástico na literatura ou no cinema deve tentar se tornar verossímil tanto dentro do enredo quanto ao apresentar suas premissas para o mundo exterior, com algumas exceções a serem mencionadas após.
            Se for objetivo do autor criar um mundo passível de ser compreendido e aceito pelo leitor como uma possibilidade, deve-se pensar bastante para criar premissas e justificativas aceitáveis na quebra da realidade e ter cuidado para não quebrar tal realidade criada ao longo do texto, seguindo sempre o raciocínio lógico que pertence ao mundo construído, e não ao que o escritor pertence. O efeito de dúvida sobre a veracidade do que é criado se potencializa ainda mais quando não contradiz o que conhecemos e o que vivenciamos, podendo apenas estar à parte da nossa visão, dando ao leitor a noção de que em algum lugar do universo aquilo de fato existe.
            Nisso que falha grande parte da ficção cósmica dos nossos tempos. Não é de hoje que deveríamos saber alguns detalhes importantes. A vida não existe necessariamente da maneira que pensamos e conhecemos. Mesmo dentro da Terra existem formas de vida que não utilizam o metabolismo fotossintético para produzir energia, sendo que pouco tempo atrás foram descobertas bactérias que sobrevivem através do metabolismo de enxofre e ferro, fornecendo assim fortes indícios de que a vida em outros planetas pode existir sem necessariamente seguir os passos conhecidos na Terra.
            Podemos perfeitamente observar tal ideia concebida numa carta de Lovecraft ao seu editor, de nome “Notas sobre a ficção interplanetária”:

“Todas as minhas histórias se baseiam na premissa fundamental de que leis e interesses e sentimentos humanos são desprovidos de qualquer validade ou significado na infinitude do cosmo. Para mim não há nada além de puerilidade em uma história em que a forma humana – bem como paixões e condições e tradições locais – sejam retratadas como nativas a outros mundos e a outros universos.”

            Basicamente, devemos esquecer o que é notoriamente humano ou terrestre. Sentimentos que nos são tão próprios, formatos sociais que surgiram ao longo de nossa história, formatos morfofisiológicos derivados de nosso processo evolutivo. O que é nosso dificilmente será do externo e tal premissa deve ser internalizada durante a criação da ficção cósmica que possui como máxima ser levada a sério (porque permaneço ciente que às vezes a ficção interplanetária é utilizada como ferramenta para explorar outros gêneros), mesmo que conheçamos princípios como a convergência.
            Admitindo tais discussões como pilares para a criação artística de ficção cósmica, e objetivando a criação verossímil e não a criação de cenários para outros gêneros (tal qual aventura e drama), devemos deixar de lado o mar antropocêntrico onde sempre estivemos imersos e nos permitir divagar pelos abismos cósmicos longe da visão puramente humana. Apenas assim, salvo raras exceções, que a ficção interplanetária pode se tornar fantasia interplanetária de fato, quebrando a vaga noção do que é real e irreal e deixando aos leitores dúvidas acerca a existência.

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Diário de uma separação


Recentemente li Diário de uma separação,  escrito por Catherine Texier. Foi uma leitura extremamente densa e que aproveitei bastante. Por isso vou postar alguns fragmentos do livro (não consegui escolher apenas um):

"Nunca amei sem sentir medo de ser abandonada, nunca amei sem sentir medo de perder o amor. Nunca amei sem, num momento ou outro, segurar, agarrar, como se eu não pudesse acreditar que um homem pudesse ficar comigo de livre e espontânea verdade."

"Se você partir, eu vou pegar sua cabeça e batê-la contra nossa porta da frente até seu cérebro explodir e a massa cinzenta grudar por toda a parede e o teto. Quero ouvir seus ossos quebrando, ver seu crânio se abrir e seu rosto se desfigurar, sangue espirrando, dentes voando, seu cabelo misturado ao interior do seu córtex, talvez você pudesse fazer dreadlocks mais facilmente com essa substância gosmenta.
Ela, a concubina, eu mataria com uma arma, um 38 apontado diretamente para a boceta, mirando bem entre os lábios, a ponta do cano encostando no clitóris e saindo do púbis como se estivesse nascendo da grama negra. Ela estaria deitada de frente, as pernas abertas, pronta para recebê-lo, mas receberia o cano frio do 38. Surpresa! Seria eu fodendo ela, entrando e saindo, entrando e saindo, deixando-a molhada, baby, ela gosta disso, não gosta, ela não gosta de um pau frio duro, seu pau é tão duro quanto o cano de um 38? De jeito nenhum. Eu não usaria um cano curto, mas um cano longo, tão longo quanto o seu pau, entrando e saindo, entrando e saindo, arrogante sabe, muito arrogante, macho pra caralho, seguro, mais macho do que você jamais poderia ser, que homem pode competir com uma porra de um 39, até que ela começasse a gemer, sua cabeça pendendo, seus lábios afastados, você gozando, baby, gozando, toma, puxo o gatilho, BANG BANG BANG, bem dentro dela, da pélvis, dentro do útero, de suas entranhas, vadiazinha, e as paredes do seu estômago explodem e todas as entranhas pulam para fora, os ovários espirram por toda a sua roupa glamorosa Comme des Garçons ou qualquer estilista japonês que ela estiver vestindo, sua vagina estúpida reduzida a um mingau vermelho, borbotões de xarope de fêmea."

"Casos de amor apaixonados são difíceis de morrer. Eles se debatem, murcham e agonizam até o amargo fim. Mas a alegria e o arrebatamento do amor valem a agonia da separação."

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Me deixas louco



Deitou-me sobre a cama e me beijou, cheio de carinho, como se cultuasse meu corpo – e o nervosismo começava a desaparecer. Permiti que assim fosse, no auge do meu eu feminino, que normalmente está tão escondido nos recônditos do corpo. Sendo levado delicadamente por todos os cantos, acariciei seu corpo e observei a beleza de sua pele negra sobre a minha pelo espelho no teto, deliciando-me com a visão de sua pele macia descendo pelas costas fortes e chegando às nádegas duras, onde minhas mãos repousavam, para subir violentas por suas costas, arranhando-as. Não faz isso, senão vou enlouquecer, dizia ao meu ouvido – e eu fazia mais, apenas para lhe provocar. 

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Uivo à Terra




            Enquanto corria por aquelas ruas escuras no subúrbio de São Luís, Paulo pensou que nunca se imaginara numa situação daquelas. Já tinha cogitado várias hipóteses, como todo bom paranoico, sobre o fim do mundo em 2012. Aquela, porém, não estava nem em seu top cinco de possibilidades aceitáveis: guerra nuclear depois de uma discussão egocêntrica sobre o cabelo de um famoso entre presidentes; pandemia de algum vírus ou bactéria super-resistente e para às quais ninguém é imune; alienígenas em busca de novos lugares para dominar depois de terem feito merda em seu próprio planeta; ataque zumbi por causa de um cientista maluco e experimentos para reavivar tecido morto; e, é claro, desastres naturais causados por uma movimentação anormal das placas tectônicas e descongelamento das calotas polares.
            Encostou-se ao muro de uma casa qualquer, desconhecida para ele por quase nunca andar por aquelas bandas de sua cidade natal. Respirava fundo, extremamente cansado depois de uma corrida de quinze minutos sem pausas. Não que fosse sedentário. Aliás, desde seus dezessete anos fazia academia, natação e ainda corria aos sábados e domingos – sem comprometer tempo para ler e cogitar novas ideias absurdas.
            Ouviu algo se quebrando dentro da casa e o grito agudo de uma menina, provavelmente com menos de dez anos de idade. Assustado, mas decidido a salvar quem pudesse, foi até a porta da casa. De modo mais furtivo que pôde, empurrou a porta e foi entrando, sem deixar de prestar atenção para qualquer movimento ao seu redor.
            Silencioso, chegou à frente da porta entreaberta e olhou para dentro da casa. Por pouco não soltou um palavrão ao ver a enorme criatura que andava dentro da casa, ao longe. Embora já tivesse visto algumas vezes as criaturas, ainda não tinha se acostumado àquela visão aterradora. Um animal de dois metros de altura, corpo robusto sobre duas patas de cachorro, andando desajeitadamente sobre duas patas – e isso era apenas a parte boa daquela imagem. O pior era ter que encarar aqueles dentes gigantescos, imersos em saliva densa escorrendo pela boca escancarada, e garras do tamanho de um dedo. Lobisomens. Quem poderia imaginar?
            O rapaz procurou rapidamente pela ampla sala, de um lado a outro. Encontrou uma menina de cabelos encaracolados, encolhida debaixo do balcão onde ficava uma cesta de frutas e um rádio. Não conseguiu ver suas feições direito por causa da escuridão, mas não tinha como ela não estar assustada. Fez um sinal com a mão, lento. Ao perceber que a garota não dava nenhuma resposta de vida além dos eventuais tremeliques de medo, voltou a observar o monstro.
            Passo a passo, ele entrou num corredor pela casa e sumiu de vista. Paulo se moveu alguns segundos depois, após ter certeza que a criatura não voltaria logo. Andou agachado em direção à garota, com o indicador sobre os lábios, pedindo silêncio. Não sabia se ela lhe entendia, já que não se comunicava nem com um sinal. Ao chegar nela, envolveu seu pequenino braço. Seus olhos se cruzaram pela primeira vez. Mais perto dela, viu que estava coberta de sangue – mas aparentemente nenhum proveniente dela.
- Calma... O titio vai te levar pra longe do lobo-mau, tá? – sussurrou no ouvido da menina enquanto a abraçava forte.
            Trazendo-a de encontro ao seu peito, começou a andar de volta à porta. Mas um barulho fez todo seu corpo congelar. A menina se apertou até que ele pode sentir seus rápidos batimentos cardíacos, acelerados de tanto medo. A criatura parecia quebrar tudo nos outros cômodos e agora seus passos voltavam em direção à sala. Arrastou-se de novo para debaixo do balcão, segurando com força a criança.
            Sem nenhum outro barulho além das pequenas batidas das garras das patas posteriores do lobisomem de encontro ao chão, sabia perfeitamente por onde a criatura passava. E ela chegava cada vez mais perto, movendo e rasgando móveis. Ouviu todo o peso do lobisomem cair sobre o chão, e deduziu que este tivesse se posto sobre as quatro patas. Percebeu que estava chegando cada vez mais perto deles. Apertou a menina até quase sufoca-la, tentando na verdade a proteger do terror que chegava. Medo.
            Quando ele estava bem ao lado do balcão, sua respiração forte já se fazendo ouvir, outro grito quebrou o silêncio absoluto da rua. Duas mulheres passaram correndo, e as duas gritavam a plenos pulmões por socorro. O bicho saiu correndo da casa sem pensar duas vezes e se juntou à caçada das duas humanas, deixando que as outras duas presas escondidas permanecessem vivas, escondidas na casa de classe média.
            Paulo levou ainda alguns minutos para ordenar tudo o que se passava em sua cabeça. Além do medo absurdo pela sua vida, várias outras coisas pesavam em seu coração. O que havia acontecido com seus amigos e familiares? Será que o resto do mundo estava consciente e nem os ajudaria? Como chegar num lugar seguro? Onde estaria seguro?!
- Meu nome é Paulo... Qual o seu nome? – perguntou, afastando-a de seu abraço por um tempo, olhando-a nos olhos.
            Depois de quase um minuto sem ouvir qualquer resposta dela, percebeu que ela não conseguiria falar nada. Disse para ela ficar parada ali até ele voltar, e então foi procurar suprimentos pela casa. Pegou uma mochila num dos quartos, achou uma lanterna funcionando no mesmo lugar. Pegou um conjunto de roupas para a menina e voltou para a cozinha, onde adicionou aos seus itens alguma comida para os dois – inclusive um chocolate para tentar alegrar a menina sem nome.
            Voltou para a sala escura, guiado apenas pela frágil iluminação que vinha da lua e passava pelas janelas e porta aberta. Encontrou a inerme menina no mesmo lugar, agarrando seus joelhos e alerta para ameaças. Abaixou-se perto dela e lhe segurou pelas mãos.
- Preciso que você me diga onde estão as chaves do carro... Tente se lembrar... – falou, olhando direto nos olhos dela.
            Ela pensou durante alguns segundos. Então, sem falar única palavra, levantou-se e começou a puxar Paulo na direção do quarto de seus pais. Caminhando lentamente, chegaram à porta do quarto, onde ela parou e apontou uma escrivaninha do lado oposto de onde estavam. Estranhou por ela não querer entrar ali, mas não forçou. O rapaz deu os primeiros passos em direção de onde a chave provavelmente estava.
            Estava tão focado na mesinha que não percebeu nada de estranho até estar no meio do quarto. Percebeu então que as paredes estavam cobertas de algum líquido estranho e que estava envolto por um cheiro forte, asqueroso – sangue por todo lado. Olhou ao lado e viu os corpos estraçalhados de um casal sobre a cama. Seu estômago se contraiu e ele sentiu o gosto ácido lhe subir a garganta. Curvou-se sobre os joelhos. Não conseguia controlar a vontade de vomitar, mas não tinha nada para expelir. Agora entendia o motivo de ela não querer entrar ali. Há quanto tempo ela estaria ali escondida?
            Depois de conseguir ficar em pé, chegou à mesinha e pegou a chave, que estava na primeira gaveta. Tentando não olhar para os lados, saiu do quarto e bateu a porta. Suava frio, sentindo um terrível mal-estar. Sua cabeça doía quase tanto quanto podia aguentar e parecia que tudo girava ao seu redor. Mas tinha que parecer forte, por ela.
- Vamos nos esconder até amanhecer, tá? Eles não aparecem durante o dia nos filmes... – falou, mais para si mesmo do que para a menina.
            Entraram na porta logo à frente, onde ele deduziu ser o quarto dela. Primeiro pensou em fechar a porta com algo pesado, mas sabia que qualquer coisa que ele pudesse arrastar não seguraria as feras. Fechou a cortina e encostou a porta. Pegou vários lençóis e travesseiros e disse para ela entrar no armário, onde a cobriu com tudo o que pode, deixando espaço suficiente apenas para ela respirar. Escondeu-se, então, debaixo da cama, onde adormeceu.
*****
            Acordou com um barulho no quarto. Zonzo de sono, não lembrava direito do que estava acontecendo na cidade, ao menos não nos primeiros segundos pós-acordar. Olhou para o lado e viu pés humanos andando de lá para cá, como se procurasse algo. Mas tinha algo de estranho ali, pois aquela pessoa estava descalça.
- Achou alguma coisa? – ouviu um homem de voz grossa, cheia de agressividade, ribombar de fora do quarto.
- Não. Tudo limpo! – o de dentro do quarto respondeu, saindo correndo do quarto logo depois.
            Paulo saiu debaixo da cama o mais silenciosamente que lhe foi possível, levantou-se e foi até o armário. Encontrou-a encolhida, já acordada e parecendo extremamente assustada. Agora que já estava de manhã, podia vê-la com exatidão. Tinha negros cabelos encaracolados e um rosto bem redondo, e provavelmente um sorriso lindo como de toda criança. Fez um sinal para que ela fizesse silêncio e lhe tirou dali.
            Encontrou sua mochila de provisões, abriu a janela e verificou se tinha alguém vigiando do lado de fora da casa. Ao ver que a saída não estava sendo vigiada, ajudou sua companheira a sair da casa pela janela e pulou em seguida sobre a grama. Os dois lutavam para respirar o mais baixo que pudessem para não chamar a atenção dos invasores. Deixou que ela entrasse no carro, e então foi abrir a porta da garagem. Voltou para o carro rapidamente, pois ouviu uma gritaria dentro da casa.
- Idiota! Você não tá sentindo esse cheiro?! – rosnou o que parecia ser o líder, seguido de um baque surdo e objetos se quebrando.
            Ouviu a correria em direção da garagem. Ligou o carro e partiu com ele, acelerando cada vez mais. Antes de sair da casa sentiu o baque de um soco na lataria do carro. Já avançando veloz pela rua, viu quatro homens aparecerem ao fundo da rua pelo retrovisor, correndo atrás dele. Ao seu redor, a rua estava vazia, exceto pela sujeira, corpos e sangue – formando tudo numa visão aterradora. Pensava já estar alucinando quando viu os homens mudando sua forma, ficando maiores e ganhando pelos – lá ao longe. E então correram velozes na direção do carro, mais rápido do que a máquina. Mortíferos.
- Vai ficar tudo bem, tá? Tudo bem, tudo bem... – falava sem parar, lágrimas quase escorrendo por seu rosto sujo.
            As bestas estavam alcançando o carro. Cinco metros. Três. Bum! Uma delas tinha pulando para cima do carro e atravessado o teto com sua força descomunal. Entremeados pelo barulho ensurdecedor de seus gritos, Paulo perdeu a direção do carro e bateu contra um poste. Confuso. Caótico. Sentiu algo lhe arrancando do banco e lhe jogando na rua, onde aterrissou com um forte baque em suas costas. A dor era tanta que ele achou que havia quebrado alguma costela.
            Quando finalmente conseguiu focar os olhos, viu três criaturas monstruosas paradas perto dele – seus dentes afiados melados de sangue e sujos de terra. Entre eles havia um homem. Seu olhar era frio, distantes, como se carregasse uma profunda tristeza. Em seus braços estava a menina, lutando para se libertar de seu raptor.
- Cara, solta ela... Solta ela... – suplicou o rapaz numa voz chorosa. – É só uma criança!
- Só uma criança? Ela ia crescer e se tornar uma de vocês! – vociferou o homem-fera, de roupas sujas e rasgadas. – Comprar. Usar. Destruir. Matar! É só isso que essa tua raça estúpida sabe fazer. Estivemos séculos aqui, esperando que vocês melhorassem, tomassem alguma consciência... Mas não! Pra nós já chega.
            De início não soube se era apenas impressão, mas percebeu que os olhos do homem mudavam gradualmente e que seu rosto se alongava. Em poucos segundos seu corpo se curvava e ele ganhava pelos e garras, seus dentes se modificavam. Em torno de um minuto a fera de dois metros pairava à sua frente, avançando silenciosamente em sua direção.
- Luíza! Luíza! Meu nome é Luíza! – foi o que Paulo ouviu por último do chorar que teve como background de sua morte.
            O lobisomem se afastou do corpo de Paulo, seus dentes cobertos de sangue e do pavor dos humanos. Junto dos outros, inclinou sua cabeça e soltou um longo uivo. Uivou ao Sol, à Lua, à Terra, à Mãe-Terra – não apenas nossa, mas também deles.

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Eu o amei



Eu o amei. Mas amei ainda mais a liberdade, aquele pedacinho de alma libertina – pior ainda, aquele meu eu de mulher traída, de mulher que quer se vingar. E me vinguei. Repetidas vezes, sem pensar, como animal acuado de unhas eriçadas e dentes à mostra.

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Pensamentos otimistas em dia de Natal



            Quando criança, Paulo sempre fora difícil.
            Era aquele tipo de moleque que pulava o muro do vizinho depois que escurecia e todos iam dormir só para fazer passos de lama (que ele jurava de pés juntos que não eram dele e sim de algum monstro). Pior ainda: ele tinha a mania de passar pelas casas das ruas paralelas apitando a campainha de alguma casa aleatória, e então se escondia e ficava ouvindo o morador xingando as traquinagens. Certa vez, num dia que percebeu que já tinha feito de quase tudo naquelas brincadeiras de criança travessa, deixou suas bolinhas de gude no corredor de sua casa na hora da moça que lá trabalhava limpar.
            - MOLEQUE MALDITO! NÃO AGUENTO MAIS!
            Ouviu os gritos histéricos da mulher, rindo-se escondido num dos armários para que seu pai não o encontrasse depois daquela; afinal, ela poderia ter se machucado bem mais do que aquela dorzinha nas costas que ficou durante o resto da semana.
            Mesmo assim, seus pais o mimavam. O enchiam de brinquedos modernos e, no natal, ganhava o número equivalente à sua idade de presentes – e isso até seus 15 ou 16 anos, quando os pais se deram conta que mimo demais não cria filho...
Desde criança se acostumara a barganhar os melhores presentes com os pais. Cartinha para o Papai Noel? Jamais! Nem acreditava nisso. Era uma longa lista de games e robôs caríssimos deixados em cima da mesa de trabalho do pai. E ainda tinha o olhar de desafio estilo “quero-ver-você-reclamar-que-tá-caro”.
Levado por essa irresponsável onda de ordenar e receber logo em seguida, foi um choque quando seus pais morreram num acidente ainda quando jovem, com 19 anos e alguns trocados. Rejeitado pelos poucos parentes que conhecia, foi obrigado a começar a trabalhar para sustentar ao menos teto num quitinete caindo aos pedaços nos cafundós-do-judas e um prato de comida no almoço.
Nem tinha como ser diferente, não é? Ele mesmo soube disso, quando pensou nos anos de adolescência rebelde que passou, gritando com todos e os pais lhe defendendo a todo custo. Ou quando, no final do terceiro ano do ensino médio, anunciou com todo orgulho na mesa de jantar que não ia mais estudar bosta nenhuma e que seria artista dali em diante. Bom, nunca soube bem o que era arte antes disso (e mesmo depois, arrisco-me a dizer), mas iria dar um jeito. Afinal, não deveria ser tão difícil assim tocar um violão ou jogar umas tintas aqui e ali ou escrever – até porque se um escritor já ficou famoso por tudo que escreveu até seus 20 míseros anos, ele ainda tinha muito tempo pra aprender a arte.
Mas nem foi dessa forma, também. Acabou por passar os dias assistindo televisão, fumando na esquina com uns caras e jogando pelada nos fins de semana, quando dava pros amigos mais antigos.
Acordar, trabalhar, comer, trabalhar, dormir, etc. Ah! Um namoro ou outro depois do expediente no supermercado e aos sábados. Domingo não. Domingo era exclusivo da cerveja com os amigos, daquele pagode na esquina e de futebol na televisão. Envolvido nisso tudo, nem viu o tempo passando.
Percebeu finalmente quando Bê (apelido do filho) nasceu. Sem mais nem menos ele já estava morando com a mãe do menino, Viviane, com quem costumava sair apenas às quintas, que era “pra ter espaço pra todas”, dizia aos amigos. Como foi entrar naquela enrascada? Mas nem era homem de reclamar das coisas, e nem tinha mesmo motivos pra isso. Viviane era direita e jeitosinha, o que todo homem poderia pedir a Deus. Seu filho, um anjo, diferente dele quando moleque.
Só se sentia mal por não poder dar brinquedos legais pro menino e aquele anel caro que sabia ser desejo de toda mulher, da infância à maturidade. Porém tempo para se lamentar sempre esteve em falta pra qualquer trabalhador. O jeito era seguir em frente, sempre em frente, senão amanhã não teria nem brinquedo legal, nem anel caro, nem feijão com arroz e bife.
E o natal já chegava pela sétima vez desde que Bê nascera. Comprara pro menino um carrinho bem elegante com tudo o que conseguira juntar – dois meses com apenas quatro carteiras de cigarro e cerveja só num domingo, porque era aniversário da Marcinha, amiga de longa data de Viviane. Quando chegou em casa com aquele presente, sentia-se plenamente feliz em dar ao seu filhote aquele presente. Sabia que o menino era super prestativo com todo mundo e comportado – até ficava na biblioteca da escola pública lendo quadrinhos sempre que podia. Aquelas traquinagens que ele mesmo fazia quando criança jamais aconteciam, ao menos não pelas mãos de Bê.
Muito comportado, o Bê. E gosta de ler, cê sabe? Gosta muito! Fica quase todo dia na escola lendo’, dizia sempre que lhe perguntavam sobre o filho, orgulhoso.
No meio da madrugada do dia que precede o natal, depois que todos haviam ido dormir, foi até a sala e deixou o único presente que pudera comprar embaixo da árvore de natal meio capenga que montara, comprada de segunda mão de uns vizinhos. Voltou ao seu quarto e se deitou ao lado da mulher.
Ploft!
Alguma coisa caiu na sala. ‘Mas que droga! Será rato?’, pensou, levantando-se imediatamente. Pegou a vassoura atrás da porta, pronto para dar umas boas batidas em cima do filho-da-mãe que estava andando pela casa a tamanhas horas da noite. Abriu a porta devagarzinho e observou.
Monte de xingamentos passaram pela sua cabeça, nenhum que eu vá repetir aqui, mas todos tinham a mesma ideia de “diacho”. Tinha uma criatura de um metro e meio parado em frente à árvore de natal. As roupas eram bem parecidas ao que sempre vemos por aí em figuras do Papai Noel. Mas aquilo não era o velhinho sorridente nem pelo... Bom, nem pelo diacho! A criatura era esverdeada e tinha uma pele estranha, escamosa, talvez.
Pensou seriamente em sair do quarto e acertar umas boas vassouras naquele ser d’outro mundo, mas frouxo do jeito que era e sem papai nem mamãe pra comprar um brinquedo-exterminador-de-criaturas-verdes, ficou parado atrás da porta com a vassoura na mão, pronto pra voar pro quarto do filho, pegá-lo e sair correndo com o menino nos braços. A mulher que se virasse – ela sabia correr mesmo.
Viu a criatura bisonha se curvando e mexendo em alguma coisa perto da árvore. Paulo se lembra perfeitamente do seu último pensamento: ‘Pelo amor de Deus, não leva o brinquedo do meu filhote!’. Isso foi segundos antes da criatura se virar em sua direção e mostrar aquele sorriso aterrorizante, de dentes maltratados, e olhos completamente negros constrastando com a pele verde reptiliana.
BUM!, desmaiou.

            No outro dia, Paulo só sentiu uns tapas leves em seu rosto. Viviane o arrastara para longe da porta e agora o acordava, sorriso largo e lágrimas nos olhos.
            - Olha, não sei como você conseguiu dinheiro pra isso, mas acho que nunca vi nosso filho tão feliz quanto hoje!
            Virou a cabeça para olhar pela porta, ainda deitado no chão, e viu seu menino no chão com vários presentes debaixo da árvore, parecendo extasiado. Nas mãos do filho, viria a saber depois, uma carta:

Caríssimo Breno,

É com prazer que venho lhe trazer alguns dos pedidos que fizeste pra mim por carta. Saiba que fiquei muito feliz por teres sido tão bom menino esse ano. Espero que continues sempre assim. Mande lembranças ao teu pai, que hoje recebeu o primeiro presente de mim também.

Que te divirtas muito,
Papai Noel.

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Dos tempos modernos


(Bruno saúda mestre Sêneca)


            Seria de se imaginar que depois de dois milênios tuas cartas trocadas com tantos outros viessem em auxílio da felicidade de todos os homens. Seria imaginável, até, que teus ensinamentos e questões sobre a vida tivessem se tornado banais por tão difundidos que seriam depois de tanto tempo.
            Sinto dizer que isso não aconteceu.
            Ainda vejo constantemente a fuga e a infelicidade de tantos. Todos eles querem fugir de suas cidades para conhecer novos lugares – pois lá, ah, lá eles serão felizes. Mal percebem que a corrida que tanto almejam fazer, ou que já o fazem, não é para sair de um lugar ruim e chegar num melhor, superior. É, em suma, para fugir de si. Fugir de uma alma atormentada, repleta dos males que tu vias por aí dois mil anos atrás – e sim, ainda os vejo por todos os cantos.
Glutões. Bêbados. Avaros. Soberbos. A sociedade não mudou muito nesse tempo que percorremos. Ainda há daqueles que falam de vícios como se virtude fossem. E todo o conhecimento que pensadores dos mais variados fizeram fluir é abandonado em bibliotecas vazias ou estantes ao fundo de lojas que mais vendem romances já sem profundidade. Não que eu não lhes dê importância, pois sabes que discordo de ti quando falas das artes frívolas. Afinal, tudo o que faz bem à nossa alma é devido, é direito.
De qualquer forma, todo o conhecimento que acumulamos ao longo de séculos é esquecido em livros pouco lidos. Os pais já não incentivam seus filhos a adquirirem a felicidade de partilha. A escola não ensina a pensar mais além de fórmulas e conceitos que poderiam ser vistos ali no dicionário. O governo cobra dos pensadores utilidade na ciência, e os pesquisadores vão atrás, dando-lhes mil e uma utilidades – mas pouco avançam no real entendimento do mundo, da natureza, do homem, da felicidade.
E foi isso que o mundo se tornou. Um abrigo de pessoas infelizes, que ora acreditam que a felicidade está em se esconder do mundo e adentrar mundos paralelos de (in)existência fantástica, ora a procuram nas esquinas, bares e ruas. Muitos ainda vão além. Viajam léguas atrás dessa bendita felicidade, a estados, países e culturas tão diferentes das que eles vieram. Para quê? Fogem apenas dos prédios que o cercam e levam consigo sua vontade de viver, suas convicções, dores, ânimo. E quando no lugar estrangeiro chegam e se veem abaixo de um novo céu, percebem-se infelizes tal como estavam. Mas, depois da experiência, tampouco percebem que se deve mudar o que carregamos dentro de nós, nossa visão de mundo, e não as ruas que andamos.
Se mudassem, estariam felizes onde quer que fosse. Poderiam sentir as amarguras que a natureza impõem e ainda assim sorrirem entusiasmados diante o mundo. E as viagens seriam mais do que fugas de si. Tornariam-se, essas, uma ampliação do eu; pois nós, humanos, não nascemos para sermos de uma ou doutra pátria. Nosso lugar é o mundo, mas nossa felicidade vem da alma. Só quando estivermos cientes disso é que seremos plenamente felizes.
Passa bem!


Obs.: O texto é uma referência ao livro Aprendendo a Viver, de Lúcio Sêneca, em formato de epístola direcionada a ele como homenagem aos seus escritos.

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Adeus, você


Estou repleto de despedidas, para todos. Minha vontade frequente de me desligar de tudo que já conheço e me conectar a tudo que há de novo, de desconhecido, escondido por entre cidades e pessoas nunca vistas, pisadas, vividas. Uma criança - não vou muito longe disso, com essa curiosidade que me devora de dentro para fora, indestrutível.

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Retrato ao Amanhecer



            Acordei meio confuso, sem saber bem onde a realidade começava e terminava, e completamente em polvorosa por causa dos meus sonhos sempre tão fantásticos e às vezes aterrorizantes. Ainda não tinha aberto os olhos quando ouvi a respiração suave ao meu lado. Então aquilo tinha sido real – e o primeiro sorriso daquele novo dia cobriu meu rosto como se tudo fosse felicidade.
            Abri os olhos e continuei imerso na escuridão, já que o sol ainda não tinha dado a graça de sua companhia. Enquanto meus olhos se acostumavam à pouca claridade dos postes da rua que as cortinas de tom pastel deixavam entrar no quarto, virei de lado e fiquei observando o homem deitado ali, provavelmente tendo fantasias tão loucas quanto as que eu estava tendo segundos atrás. Aos poucos comecei a enxergar os contornos de seu corpo de ombros largos e pernas grossas por causa dos esportes frequentes – tudo nele era tão erótico, quase pornográfico! Até sua barba mal feita que lhe dava um aspecto ainda mais masculino.
            Aproximei minha mão do seu peito, mas não lhe toquei. Sabia que se eu começasse ali, dificilmente conseguiria parar. Pousei-lhe um beijo rápido na bochecha e me afastei, com medo de ficar preso ali pela eternidade, sem jamais conseguir me desvencilhar dele. Levantei e fui até o banheiro do meu quarto. Me olhava no espelho enquanto escovava dentes, observando algumas pequenas falhas no rosto – não, não vou me ligar nelas. Já estou farto desse meu narcisismo.
             Voltei ao quarto e abri um pouco as cortinas, o suficiente apenas para eu me encostar à janela e ficar observando o mundo lá fora. Sempre acordei cedo, antes mesmo de amanhecer. Foi uma mania que adquiri quando morava com meus pais e meus irmãos mais novos muitos anos atrás. A partir das seis horas da manhã tudo era tão caótico, cheio de gritaria sobre o pagamento de contas, choro de criança que não quer tomar banho nem ir pra escola. Tudo turbulento demais para mim. C’était trop turbulent!
            E foi assim que comecei a acordar cedo, no mesmo instante que todos ainda estavam imersos de sonhos ou apenas começando a dormir. A casa era finalmente um recanto de solitude. Eu podia andar pelos corredores pensando nos personagens que lia nos velhos livros da biblioteca do meu avô. Imaginava o que eu faria naquelas situações, das mais aterradoras histórias de horror cósmico de H. P. Lovecraft até os romances de Jane Austen. Ah! Como eu aproveitei aquela solidão intensamente!
            Continuei com o hábito mesmo quando fui morar longe, noutro estado, longe dos meus pais, irmãos e amigos. Mas não por causa deles. Percebi que era bom acordar antes do mundo e lhe ver apertando seu botão de start algumas horas depois, com o sol a aparecer no céu e os pássaros começando seus cantos desesperados. Tenho feito isso desde então, e muitos dos meus ex-namorados achavam estranho que eu apreciasse tanto a solidão assim. Um deles - aquele cheio de neuroses, devo dizer – costumava dizer que era porque eu não gostava o suficiente dele e que preferia estar longe. Alegava me amar. Duvido disso.
            Preciso dessa calmaria no início do meu dia para poder me expandir e pensar, sem dúvida alguma. Mas é tão difícil achar alguém que se encaixe perfeitamente nessas nossas pequenas manias, e ainda nos enlouqueça na cama e nos conforte e suporte nos momentos difíceis. É árdua essa tarefa de achar um companheiro e muitas vezes acreditei que jamais encontraria, pois preferia ter apenas a mim do que aceitar menos do que o grande amor.
Naquele momento em que eu pensava sobre todas essas coisas de amores e futuro, os pássaros começavam a cantar e voar de uma direção para outra, bem agitados. O sol começava a surgir por detrás uma grande árvore de formato estranho por entre as árvores. Abri a janela e respirei aquele ar único, ainda sem toda a fumaça que os ônibus e carros ficam soltando enlouquecidamente ao longo do dia. Solidão, tão bela – mas sei que a partir de um momento cansa. Aliás, o que me traz a felicidade é o equilíbrio perfeito dum e doutro, com pequenas margens de erro. Um pouco de solidão pela manhã para abstrair, um pouco mais tarde para ler e escrever, e um mundo de amor e paixão.
Quando ficar sozinho ali à janela já me cansava, o corpo de Guilherme me abraçou pelas costas. Bom dia, amor – ouvi, naquela sua voz aveludada, que eu só podia imaginar pertencer a deuses gregos ou romanos. Seu corpo quente por causa do sono encostava diretamente em minha pele e sua respiração sobre o meu pescoço me deixou arrepiado, desejoso. Virei o rosto e lhe dei um beijo. Perfeição. No exato instante em que a solidão já deixava de me agradar ele chegou a mim, e finalmente me pareceu que eu poderia ter os dois, tudo o que eu poderia querer para a minha vida. Sem ser sufocado a todo instante, sem pressão – os dois livres e querendo estar ali plenamente.
- Vamos ter um futuro maravilho, sabias?
- Vamos começar esse futuro daqui trinta segundos, então?
- Como vamos fazer isso?
- Vamos para debaixo daquele lençol ali e fazer coisas maravilhosas lá – e me arrastou em direção à cama, preso num abraço cheio de calor e desejo, com sua barba roçando a minha pele. E antes de ir fechei a janela, não para a rua, mas à solidão completa, apenas para talvez lhe abrir novamente durante o próximo amanhecer.

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Ficção vs Realidade: A Rosa Púrpura do Cairo



“E a coisa mais certa de todas as coisas
Não vale um caminho sob o sol”
(Caetano Veloso – Força Estranha)

            Imagine-se aprisionado numa vida deplorável, com uma pessoa que não faz nada além de lhe explorar até os limites em prol de seus desejos pequenos e egoístas e sem possibilidade de seguir adiante, de modificar o estado. É nesta situação que se encontra Cecília (genialmente interpretada por Mia Farrow), protagonista de A Rosa Púrpura do Cairo (Woody Allen, 1985) abusada por seu marido que passa o dia jogando e bebendo e com outras mulheres, enquando ela trabalha para manter a casa – tendo como cenário de fundo tempos de depressão econômica.
            É nesta atmosfera dolorosa, já tão própria do ser humano, que Cecília se mostra apaixonada por filmes, indo inúmeras vezes ao cinema e sabendo de tudo o que acontece nos filmes e na vida dos atores. O mundo ficcional que ela encontra no cinema acaba se tornando um ponto de partida para fugir de sua realidade degradante, transtornada por um marido ausente e por uma vida banal.
Neste cenário onde o desenvolvimento tecnológico tem influenciado cada vez mais a substituição da realidade pelo ficcional ou ainda a hibridização desses dois domínios (real vs irreal), estes processos culminam na ficcionalização/desrealização do mundo quando Tom Baxter (interpretado por Jeff Daniels) atravessa sua dimensão irreal (filme) para a dimensão real, motivado por sua paixão por Cecília. Ao longo do filme, Cecília se vê confrontrada com as escolhas entre o real e o irreal, onde é forçada a tomar uma decisão – no caso, pela realidade, que termina num final melancólico.
Diante todo esse enredo, fiquei surpreso (e decepcionado) ao encontrar várias críticas e resenhas comentando exclusivamente o papel da metalínguagem e/ou sobre o poder do cinema na felicidade das pessoas. Pareceu-me incomum que ninguém tenha suscitado uma discussão bem mais interessante, a meu ver, erigida nessa batalha apocalíptica que estamos vivendo: realidade vs ficção. Onde surgem casos, esporadicamente, de pessoas que morreram de fome por não conseguiram se desgrudar do mundo ficcional; onde a vida social/natural é relegada ao segundo plano para dar prioridade ao virtual – que, convenhamos, não passam de uma cópia infiel; onde o primeiro-ministro de uma grande nação comenta publicamente que o problema de novos empregos é não sobrar tempo para ler quadrinhos.
A irrealidade pode suprir de maneira quase total as necessidades individuais e fornecer possibilidades de evasão e de sentidos e possibilidades, como pode ser visto quando Cecília abandona o cinema com Tom, recém-saído das telas, e vivem uma paixão pelas ruas da cidade. Essa mesma vantagem do ficcional pode ser vista noutras obras, como, por exemplo, Jogador nº1 (escrito por Ernest Cline); ou mesmo em referência a quase todos de minha geração, Harry Potter e a Pedra Filosofal (J. K. Rownling), naquele inesperado encontro de Harry com o Espelho de Ojesed.
Depois de toda a confusão da fuga do personagem, quando os outros ficam confusos e perdidos em suas ações dentro do filme, que a imprensa se dá conta do acontecimento e começa a cercar o lugar. Nas diversas discussões, quando um dos outros personagens alega querer sair das telas também, é que se ouve uma das melhores (se não a melhor) fala do filme:
“The real ones want their lives fictional,
and fictional ones want their lives real.”
            É perceptível a decepção de Cecília ao se deparar com detalhes de sua ficção que veio em fuga à realidade, tal qual seus conceitos pequenos sobre discussões filosóficas ou seu senso completamente impraticável e inadequado ao mundo que os cerca. Torna-se óbvio que a ficção não pode assumir o lugar de algumas das características próprias do indíviduo e emergentes do sistema que juntos formamos, como o ato de pensar e nossas relações que formam o todo. É isso que a personagem percebe, abrindo mão de seu personagem fictício por um personagem real que lhe promete uma mudança inesperada em sua vida, à qual ela se joga inteiramente. Mas, deixada de lado por este último, a personagem parece voltar ao comportamento psicótico de antes, entregando-se novamente à sétima arte, abalada por ter sido enganada.
            Ao contrário das resenhas que li sobre o assunto, a cena final não demonstra a esperança da personagem ao ver mais um filme e visualizar possibilidades futuras. É interessante ver que ela apenas volta ao comportamento de aceitação da realidade e fuga completa da realidade à ficção. Percebe-se que Cecília foi completamente feliz apenas nas relações com o mundo real, representado pelo ator hollywoodiano que vem para resolver a situação do personagem fictício fugitivo, pois este entende as necessidades práticas do mundo e ainda assim lhe permite a perspectiva de um futuro melhor: ao mesmo tempo se conformando com a realidade, mas disposto a modificá-la em prol de sua melhoria. O que demonstra a cena final é o retorno ao seu comportamento de negação da realidade para viver na ilusão, onde já não era feliz antes – senão jamais teria se entregado a outros caminhos, possibilidades.
            Não obstante, certamente não sou contrário às fugas da realidade. Pessoalmente, acredito que um equilíbrio seja necessário, onde não siga nem o extremo de submissão completa nem de negação absoluta.

“Não faz bem viver sonhando
E se esquecer de viver,
lembre-se.”
(Harry Potter e a Pedra Filosofal – J. K. Rowling)

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I - O Orfanato Formoso



            Godó, apelido pelo qual a maior parte das crianças do orfanato chamavam aquele menino de cabelos negros em cuia que nem de índio desde que se lembravam de o conhecer, sempre quis voar. Achava muito legal a ideia de estar passeando por entre as nuvens e ainda poder ver de lá de cima todas as coisas pequeninhas embaixo – tudo muito minúsculo, que nem formigas. Os pássaros devem ter a vida mais legal do mundo, costumava dizer para quem quisesse ouvir, eles podem ficar o tempo que quiser voando por aí e se não gostam de um lugar só voam pra beeem longe.
            Dona Isadora, a diretora do orfanato, era quem não gostava nadinha de ouvir essas lenga-lengas (como ela mesma dizia) sobre voar e ir pra longe, afinal podia dar imaginação demais pras crianças e outra sorte de ideias inconcebíveis – mas as crianças nem sabiam o que significava essa palavra aí, inconcebível, e achavam ter algo a ver com poder voar ou fazer mágicas. Mas nem fazia diferença, porque todos eles adoravam ouvir as “lenga-lengas” do Godó até altas horas da noite, muitas vezes escondidos em algum compartimento da grande casa e ouvindo a história que ele contava bem baixinho pra que ninguém mais acordasse.
            Uma vez por semana eles marcavam de se encontrar logo depois das 10 da noite, quando Dona Isadora já estava em seu quarto dormindo. Os grupos saíam de seus quartos o mais silenciosamente possível e iam ao lugar marcado, toda semana um espaço diferente daquele usado na semana anterior – algumas vezes o encontro era até no escritório da Diretora, só pra aumentar a sensação de perigo quando as histórias eram desse tipo.
E, essa semana, Godó tinha marcado exatamente no escritório dela.
Manu, uma menina loira que falava pelos cotovelos e estava sempre correndo com os meninos, foi a primeira a sair do dormitório das meninas. Ela tinha um gosto por aventura maior que as outras garotas e sempre ia primeiro nessas coisas - pra checar o território, costumava dizer em voz alta e cheia de coragem às outras. Neste dia, saiu do quarto exatamente às 10:05 e deu uma volta rápida pelo segundo andar sobre as pontas dos pés, fazendo o mínimo de barulho possível, para verificar se a diretora realmente já tinha ido dormir. Depois voltou e deu uma batidinha na porta do quarto das meninas e dos meninos. Quando a porta se abriu para as crianças saírem, ela mesma saiu correndo para ser a primeira a chegar ao escritório.
Manu entrou com o sorriso aberto no escritório, mas logo murchou: Godó já estava lá, sentado na grande poltrona de couro da diretora, mãos cruzadas sobre a mesa que nem a mulher fazia quando ralhava com algum dos órfãos.
- Mas ora essa, estamos novamente correndo pela Grande Casa altas horas da noite, srta. Manuela? – Imitou o tom autoritário de Isadora, mas logo caiu na risada ao ver a cara de irritação de sua pequena companheira.
Tinha um apreço especial pela menina, mesmo ela sendo bem mais nova que ele. Enquanto ele já tinha 12 anos completos desde novembro passado, ela tinha 6 anos e meio. Tratava-a como a uma irmãzinha. Vezemquando ela quebrava alguma coisa e ele assumia a culpa sem que ela soubesse, só pra não brigarem com a menina. Semana passada tinha sido o caríssimo vaso chinês do Salão de Entrada doado por uma família riquíssima que adotara uma criança três meses antes e estavam felissísimos juntos.
O vaso ficava na mesinha de canto perto da porta que levava à cozinha e Manu estava correndo pelos corredores e se esqueceu completamente que tinha algo ali. Resultado: vaso quebrado e Isadora passando horas intermináveis ralhando com ele coisas tal “como um moleque desse tamanho ainda fica correndo por aí?!” e “inadmissível que depois de tantos anos aqui você ainda não se comporte”, e tudo isso enquanto o encarava por sob seus oclinhos desgastados com aqueles olhões enfurecidos.
- Não vale! Você sempre chega primeiro! E nem avisa pra ninguém que a bruxa velha – maneira carinhosa dos pequenos se referirem à Isadora em sua ausência – já foi se deitar! – e se danou a resmungar. Mais cedo eles tinham apostado o chocolate do almoço de sábado quem chegava primeiro no encontro e, se tinha uma coisa que Manu detestava do fundo do seu coração, isso era perder chocolate.
As outras crianças iam chegando aos poucos e ficavam rindo dos resmungos de Manu. Com a exceção de Jamilly, é claro. Ela não era de rir muito por causa dessas piadas e brincadeiras – na verdade, ela não ria de quase nada, exceto, talvez, de ouriços cacheiros, pois os achava extremamente engraçados. Quero dizer, até falar alto aquele nome a fazia rir.
O-u-ri-ço-ca-che-i-ro.
Mas, em geral, Jamilly era uma criança muito séria. Vivia escondida atrás de alguma coisa: às vezes atrás de algum grande livro de capa dura tão pesado que mal podia carregar e outras atrás de seus grandes óculos de aros redondos com o qual costumava olhar pras formigas e pros besouros. Mesmo que não fosse lá muito simpática, ela era uma das melhores amigas de Godó, até porque estava no Orfanato Formoso por tanto tempo quanto ele, ou até mais (ninguém sabia bem dessas coisas, pois os registros nunca eram mostrados pras crianças – inclusive, os registros começaram a ser chamados de Arquivos Obscuros pelas crianças depois de uma história particularmente tenebrosa que Godó contou dois anos antes).
Jamilly ainda abriu a boca pra começar a brigar com o menino por ficar pegando no pé da pequena, mas ele logo percebeu a disposição dela de arrumar uma longa discussão sobre o assunto e fez todo mundo se aquietar dizendo que ia começar a história do dia. Sabia que não ia fugir dela no outro dia, mas não escutar na frente de todo mundo já era bom o suficiente.
- Hoje eu vim contar pra vocês a história dum sonho que eu tive anteontem. Bom, tudo começou quando um grupo de heróis ouviu falar de uma lenda antiga, originada antes mesmo dos templos gregos ou egípcios. Essa lenda dizia que havia um objeto escondido no mundo que traria imenso poder ao seu usuário, mas que foi muito bem escondido por Gregóriles, o mais grandioso mago de todos os tempos, famoso por vários e vários motivos, como ter descoberto como usar a energia dos sonhos na magia da época. Uma das heroínas, Jenny, muito inteligente que era, percebeu que o objeto tinha sido escondido do mundo para que não caísse nas mãos erradas e que era melhor que assim permanecesse. Explicou para os outros que, por exemplo, se a Rainha dos Vales Obscuros conseguisse por sua mão nesse objeto mágico, provavelmente ela traria muita infelicidade para o resto do mundo com suas vontades sombrias.
- Mas a rainha não sabia de nada, né? – Perguntou Manu, que já tinha parado de resmungar fazia um tempo e agora ouvia absorta a história de Godó.
- Na verdade, Manu, ela sabia. Os heróis descobriram só por causa de um dos subordinados da Rainha, que o povo chamava de O Grandão. Apesar de ser assim tão grande que mereceu esse nome, ele era bem burrinho, tadinho. Algumas pessoas inclusive diziam que ele tinha caído numa poção do esquecimento quando criança e que ficou para sempre com sequelas do preparo mágico e que começou a ser chamado de O Grandão só porque numa noite de Festas Travessas ele esqueceu o próprio nome quando foi cantar no palco.
- Festas Travessas?! Que nome engraçado! – Riu-se Zézinho, um garoto mais novo que Manu que era tão pequeno, tão pequeno, que mais parecia um piolho.
- Costumava ser uma festa bem engraçada logo que surgiu, mas depois de um tempo não foi mais assim. Bandidos de todas as regiões, espiões, assassinos, brutamontes, bruxas da floresta, diretoras de orfanato, enfim, todo tipo de gente má foi começando a participar das Festas Travessas e ela acabou se tornando uma festa muito perigosa. Quando isso começou a acontecer, quase nenhuma gente de bem ia lá; e crianças, só se fossem trombadinhas ou espiãs das Terras Cristalinas, que era o caso dos heróis dessa história.
- Mas os heróis eram crianças?! – Perguntou Zézinho, surpreso.
Manu retrucou: Ué, e por que não? Eu sou criança e sou muito mais corajosa que muita gente grande por aí! E muito mais que vocês meninos, também.
- A Manu tem razão, Zé. E aquelas crianças eram, sem dúvida nenhuma, as mais bravas de todos os reinos. Tinham muitos boatos sobre elas, muitos inventados pelos povos e pelos bardos, mas muitos verdadeiros. Um dos boatos mais conhecidos sobre eles era de quando eles tinham enfrentado com muita perspicácia o velho Lorde Andrew Cantos, que queria separar as princesas Magda e Moira para sempre! Eles entraram no castelo dele fingindo ser entregadores de flores das montanhas geladas do Norte para o casamento e depois, fingindo serem missionários da igreja do santo casamento entre lordes e princesas conseguiram que o guarda abrisse o quarto de Magda, soltando-a assim de seu infeliz destino. O Lorde ainda tentou ir atrás deles, mas ninguém corria na floresta como eles, isso eu lhes digo, ninguém!
- O Lorde não tinha cães de caça?
- Na verdade, não. Mas ele tinha papagaios de caça, temidos em toda a região por suas bicadas ferozes e por deixar titica por todo lugar que passavam – um bando tempestuoso de aves malignas. E o bando foi atrás dos heróis e os encontraram nos confins da Floresta da Entrada, que na verdade não levava a lugar nenhum, pois parava às beiras de uma montanha gigantesca e inescalável. Porém não puderam fazer nada com os heróis, pois nenhum animal não-humano podia fazer algo de mal pras princesas Magda e Moira. E foi assim que eles conseguiram escapar do castelo e fugir das terríveis garras do... Lorde Andrew.
- E o que isso tem a ver com a Rainha dos Vales Obscuros?
- Ah, na verdade não tem nada a ver... Desculpa. Então, continuando: era dia de Festa Travessa e havia gente má pra tudo que é lado, mas lá estavam as crianças heroínas em seu intento de descobrir as coisas. O Misterioso, especialista em disfarces da equipe, engatou numa conversa com O Grandão, que acabou falando de sua nova missão. A Rainha queria que ele encontrasse e seus capangas fossem na igreja mais antiga da cidade e procurassem uma suposta câmara secreta, que um dia foi um dos diversos lugares que Gregóriles ficou em suas viagens, e assim procurassem qualquer coisa que ele tivesse deixado para trás.
- E como ela sabia que o mago tinha passado por lá?
- Na época ninguém descobriu como, mas depois de algum tempo descobriram que ela havia gasto muitos anos de sua vida aprisionando a alma de gente importante que morria por todos os reinos. Ela aprisionou a alma de estudiosos, magos, missionários, príncipes e reis nobres, sábios – e até de gente maligna, mas poderosa também, que tinha muito dinheiro e poder, porém pouca sabedoria.
- Nossa! Ela era uma pessoa muito má, né?
- Sem dúvida nenhuma, e mesmo assim tinha centenas de súditos, ainda que muitos aleguem que tudo isso se devia a maldições de dominação e ameaças. De qualquer forma, agora eles sabiam que ela estava na trilha do objeto lendário e que eles não poderiam ficar parados diante aquilo. Depois do término da festa, seguiram silenciosamente O Grandão e seu grupo de saqueadores pela cidade e se depararam com a grande Catedral de Nós Todos. Eles viram o grande grupo de malfeitores entrando no lugar, mas Jenny parou seus amigos heróis. Disse: “Eles erraram. Essa não é a igreja mais antiga dessa cidade. A igreja mais antiga da cidade foi demolida e só sobrou sua área subterrânea, que fica debaixo do palácio central.” Todos estavam admirados com o conhecimento dela e logo...
Toc-toc-toc-toc-toc-toc.
Um barulho estranho vinha do andar de cima. Parecia barulho de... Sapato!
Isadora provavelmente tinha acordado e andava no andar superior com seus saltos pretos. Todos ficaram com os rostos pálidos de medo e olhos arregalados, sem saber o que fazer. A porta do quarto da mulher se abriu rangendo e todos pareceram ficar mais pálidos do que era humano. Godó, que já estava acostumado a burlar uma regrinha aqui e ali, levantou-se de súbito antes que todos entrassem em pânico e saíssem correndo pelo grande casarão pra se esconder. Pôs o indicador em frente à boca para pedir silêncio aos outros e cochichou algumas coisas ao ouvido de Jamilly.
Foi até a janela e a abriu devagar, pra não fazer nenhum barulho. Saiu pela janela do escritório de Isadora e andou por um caminho de pedras, sendo guiado pela fraca luz que a lua permitia chegar até eles. Era meio difícil andar nas pedras descalço, mas continuou ignorando completamente a dor em seu pé. Chegou à árvore, pegou algumas das pedrinhas no chão e lançou a primeira contra a janela do quarto da diretora. Tá! Então a segunda. Tá! E se escondeu atrás da árvore quando a mulher ligou a luz do quarto e correu à janela para ver o que tinha sido aquilo.
Seu coração batia forte de tanto medo que estava. Achava que se alguém estivesse perto naquele instante poderia até ouvir as batidas. Viu a luz de uma lanterna passando pelo campo longe dele. Saiu de trás da árvore por uns segundos, viu que Isadora focava em outra direção e lançou mais uma pedra. Para ela não perder o interesse na busca – pensou.
Agora a lanterna procurava próximo demais da árvore onde ele se escondia, mas dificilmente ela lhe veria se ele continuasse ali agachado. A luz da lanterna passou várias vezes por ele, e então ele se virou para ficar olhando à janela do quarto das meninas, que dava naquela direção do grande terreno também. Depois de alguns minutos apreensivos, viu que a luz do quarto das meninas acendendo e apagando várias vezes – sinal que tinha pedido para Jamilly lhe mandar caso tudo tivesse dado certo e todo mundo já estivesse em seus quartos.
Aliviado já que os outros não estavam mais em perigo, mas ainda com medo, encostou-se de novo ao tronco e ficou esperando a lanterna desligar para ele voltar à sua querida e confortável cama. Enquanto esperava as luzes desligarem, ficou pensando no que os heróis encontraram na velha igreja e como continuaram a missão. Provavelmente tentariam encontrar o item mágico antes da Rainha e iriam acrescentando novos desafios no caminho para impedir que ela chegasse perto de encontrar. Imaginou uma conversa entre Jenny e o líder da expedição, e o grande casamento que um dia eles iriam ter depois de todas suas aventuras.
Nem se deu conta que tinha adormecido. Só ouviu os passos de alguém se aproximando e ao longe a silhueta dum homem gigantesco. Inferno! Ela chamou o Seu João! Seu João era o zelador e vigia do Orfanato Formoso e vivia numa casinha pequena dentro da propriedade. Era sem dúvida um dos maiores terrores das crianças, principalmente dos novatos, já que os mais velhos já tinham ‘a manha’ para enganar o homem. Os meninos, inclusive, faziam um ritual de entrada para os mais novos: o menino novo tinha que entrar na casa do Seu João e pregar alguma peça nele, como trocar seu açúcar por sal ou pregar suas sandálias com superbonde no chão.
Manu tinha sido a primeira garota a ser admitida no Clube da Guitarra Velha – nome dado por um dos membros-fundadores 7 anos antes por causa de uma velha guitarra, a qual na verdade era um violão, que os meninos tinham escondido no sótão e que brincavam de vez em quando com ela. Ela nem tinha pregado a peça no Seu João para entrar no clube, pois nem sabia da existência dele (como a maioria das meninas), mas mesmo assim foi chamada numa reunião de última hora e admitida nele. Afinal, ela tinha apenas entrado na casa do zelador enquanto ele dormia e pregado sua roupa do corpo ao colchão com um grande pregador de por papéis nos quadros de aviso. E de manhã lá estava ele, gritando: ALGUÉM ME AJUDA! TÔ PREGADO NA CAMA!
Ninguém nunca tinha visto Isadora tão enraivecida quanto naquele dia, nem mesmo naquela vez quando João Funga-Funga, adotado aos 8 anos por um casal de professores universitários e membro honorário do Clube da Guitarra Velha por seus memoráveis feitos, substituiu todo o creme de rosto da diretora por lama do velho lago do fundo do orfanato. As crianças mais antigas ainda lembravam com bastante humor como o resto da velha bruxa tinha ficado na ocasião, todo purulento e marcado de vermelho, que nem “cara de adolescente”.
Vejo agora que eu mesmo, o narrador dessa história, tenho a mesma mania do menino Godó, sempre pegando novos caminhos que se entremeiam em suas histórias só pra mostrar a beleza doutros lugares – mas bem, bem, melhor eu continuar o que antes contava e depois posso, entrelinhas, falar doutros acontecimentos do orfanato com as crianças mais astutas do país. De onde havíamos parado: lá estava o Seu João, agora não tão longe depois do tempo que Godó saía da confusão do recém-acordar e do choque que a situação lhe causara.
- Menino, não atreva a se mexer que eu tô te vendo!
- Me obrigue!
E lá se foi Godó, correndo desesperadamente em busca da própria salvação, o coração palpitando mais que de cavaleiros medievais diante dragões – o que, na opinião de muitos ali no orfanato, era quase a mesma situação que enfrentar as gigantescas lagartixas cuspidoras de fogo; e, na de outros, necessitava ainda de mais coragem porque depois do dragão não tinha nada pra enfrentar no caso do cavaleiro ser pego, e no caso do velho zelador, o capturado tinha ainda que enfrentar a velha Isadora e seus óculos e mãos cruzadas sobre a mesa, e aí qualquer um iria preferir mesmo o fogo das narinas reptilianas, sem dúvida nenhuma!
Haja corrida. Godó rodeava a grande casa enquanto Seu João mancava atrás dele, sendo deixado para trás a cada segundo pelo menino mais que serelepe, correndo que nem lebre fugindo de lince ou menino fugindo de beijo de tia na frente dos amigos. Um público já começava a ser visto pelas janelas e muitos começavam a gritar dicas sobre o que ele deveria fazer. Deu até pra ouvir direitinho a voz de Manu por entre as outras: “Joga o velho manco no lago! Joga!”
Burburinho por todos os lados, muitos comentando sobre o que aconteceria a seguir, mas a única realmente sã naquela papagaiada – papagaiada não, porque não tinha nenhum papagaio ali, meninada mesmo – era Jamilly. Essa já tinha falado que era melhor ele ter se entregado logo ou corrido pra se esconder na casa entre todos os outros, e como ele não fez nada disso, nem ficou pra ver o futuro do menino, pois ela mesmo já sabia qual era. Sentou em sua cama e puxou As caçadas de Pedrinho, que já terminava de ler depois de dois dias debruçada sobre o livro.
Levantou os olhos com um ar de “eu sabia” quando todo mundo parou de falar no mesmo segundo, menos Manu, que ainda deu um último grito de suporte: Te esconde antes que a velha venha! Mas, bom, já era tarde demais.
Isadora estava em frente da porta principal da casa. Os órfãos já a conheciam o suficiente para saber que a cara dela de alegria, de tristeza e de raiva eram as mesmas. Exceto quanto realmente irritada com algo. Olhos verdes esbugalhados, lábios contraídos até quase desaparecerem, rosto completamente congelado – alguém estava muito, muito ferrado quando se deparava com essa cena. Todos recuaram das janelas, exceto alguns dos amigos mais próximos do menino, que ainda ficaram pra ver a derrota de Godó e fazer caretas diante a cena.
Godó ainda nem tinha visto o que acontecia e corria rapidamente do zelador em direção da grande casa pra se refugiar entre os outros meninos. Seu rosto vermelho pelo esforço e suando como se tivesse jogado uma partida de futebol inteira como atacante, passou direto pela árvore onde se escondera antes e correu em direção ao gol – no caso, a casa que poderia lhe dar abrigo – mas deu de cara com aqueles grandes olhos esbugalhados de vilã de filme infantil.
- Caraca, agora o bicho pegou!
- Siga-me neste instante.
E ela falou de maneira tão fria e seca que ele já sabia o que ia acontecer. Todos sabiam, mas ninguém podia fazer nada. Mas tudo bem, ele já estava acostumado àquele tratamento desde criança e nem chorava mais. Seguiu a mulher por entre os corredores escuros e desceu as escadas até o grande porão, olhos abaixados e sem reclamações.
- Que droga. Como eu queria poder voar pra longe desse lugar que nem os passarinhos, bem pra longe dessa bruxa.

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