Era um dia frio
quando pousaste
Livre, tuas asas
me envolveram
E me aqueceste,
para logo alçar voo
A imagem que o
mundo tem de mim é a de uma pessoa fechada. O tipo de mulher que
parece sempre andar debaixo de uma garoa fininha e que deixa o rosto
ficar eternamente molhado na chuva. Que está constantemente em um
anoitecer de dias invernais, onde o sol se esconde, tímido, por
detrás de nuvens vagarosas. Que parece ter tido uma vida muito feliz
que, hoje, restringe-se às lembranças.
Muitos encaram essa
cena como triste, mas não a vejo assim. Para mim, ela é harmoniosa,
especialmente devido à paz que ela me permite manter com os eventos
que me cercam. Por ter vivido feliz, aprendi a aproveitar cada
momento, cada passo dado. Nunca deixo de sentir o prazer do sol
tocando a minha pele, o odor das flores que inunda o ar na primavera
ou o cantarolar campestre dos pássaros. Faço tudo com um sorriso
leve, que usualmente confundem com frágil. Por isso, as pessoas
costumam me descrever com apenas uma palavra: melancólica.
Não são apenas os
olhos negros, cósmicos, que a todo momento buscam olhar através da
superfície, vendo um além-mundo por detrás paredes, prédios,
pessoas. Tampouco os ombros curvados sob o peso descomunal dos muitos
anos que já percorri e que ficaram ultrapassados pelo presente, mas
que ainda se fazem tão presentes na memória. Nem pelos vestidos
desgastados, outrora coloridos e que hoje já perderam grande parte
das cores vívidas, que costumo usar. Ou pela poeira que mal me dou
ao trabalho de tirar quando ela encobre minhas roupas após uma longa
sessão no chão de bibliotecas, livrarias, sebos.
A verdade é que
cada pedaço de mim evoca essa imagem.
A maneira como ando
devagar, às vezes me atrapalhando ao dar o próximo passo, de tão
desatenta que sou ao que está palpável – quase como uma criança
curiosa, ainda desajeitada, que está aprendendo a andar e a enxergar
o mundo fantástico que lhe cinge. A aura suave que flui lentamente
pelas minhas palavras, pouquíssimas vezes em abundância, enquanto
falo às cercanias, chegando aos outros no ritmo lento de uma tarde
morna de verão à sombra das árvores. Sou inteira assim, feito
remanso no qual as ondas já perderam sua força e agora deitam
preguiçosamente sobre a superfície d'água, calmamente perdida por
entre memórias.
Até guardo, com
toda a delicadeza, fortificando e nutrindo sempre que possível, um
templo. Templo esse erigido sobre totens, símbolos sagrados
escondidos do mundo, reunidos ao longo dos anos num espaço sacro que
protejo com amor e atenção. E lá está ele, por trás do denso
nevoeiro que o abriga e protege do mundo. Só minha aproximação faz
com que a névoa ceda, tornando-se fina bruma até que, por fim,
desaparece por completo; expondo os caminhos, anteriormente ocultos,
para a sacerdotisa do santuário.
Embaixo da cama, às
vezes intocado por semanas, está o velho baú – meu santuário.
Depois de dias sem o tocar, novos moradores o ocupam e constroem
complexas casas apoiadas em suas paredes de madeira exótica,
movimentando suas pernas e quelíceras. As fiandeiras derramam com
exatidão magistral a seda, criando uma armadura galática para o
templo espectral; uma deusa própria, Teia, que fecunda a imaginação
com sóis, luas e auroras.
Carcomido pelas
décadas que passou na penumbra de um porão, foi-me entregue pelo
meu avô pouco antes de sua partida – para não sei onde, talvez
para o lado da própria Teia, mas outra, que nem sei bem qual. Antes,
guardava roupas de um século há muito esquecido entre as páginas
dos livros; agora esconde tesouros. Porém, bem mais do que um espaço
insignificante de contenção, é o mais significativo dos objetos.
Quando o drago da
escuridão, lembro-me imediatamente dos anos de infância ao lado do
meu avô, ao menor toque com a superfície áspera do mogno. Ser
embalada na rede, rir até a exaustão sob inabaláveis ataques de
cócegas, histórias em frente à lareira na hora de dormir, café e
pães de queijo à vontade em finais de tarde. E o cheiro, mistura de
livros velhos, tabaco - daqueles que os mais velhos mascam em frente
de casa – e flores. Ele amava tanto as flores do seu pequeno
jardim, cuidado com esmero virginiano, que deu à filha única o nome
da mais bela entre todas: Margarida.
As dobradiças
rangem quando o abro. A primeira imagem que tenho é a de uma pequena
camisa cor de rosa, menor que eu até. A cor é tão chamativa que
não consigo olhar em nenhuma outra direção até lhe tomar nas mãos
e sentir o algodão deslizando pelos meus dedos finos. Uma pequena
borboleta amarela que surge do baú, agitadíssima, pousando em minha
cabeça. A roupa pertenceu à Mariana, melhor amiga dos anos de
adolescência, quando já não corríamos junto aos meninos.
Andávamos sempre em grupo, risonhas e envergonhadas. Nesses tempos
ainda não tinha percebido tudo o que existia aqui dentro e, por
isso, vivia na maior das felicidades; a alegria característica dos
que não sabem e nunca souberam.
O pedaço de pano
ficou em casa quando ela partiu rumo ao Rio de Janeiro para cursar
Direito numa renomada universidade. Nosso contato foi diminuindo
gradativamente; a distância atrapalha muito, sabe como é, né? Até
que veio a última ligação, bem no final de dezembro, quando o sol
já despontava intenso por trás das casas e afastava as lembranças
do inverno pesado. Contou-me sobre o tal Ricardo, que nunca cheguei a
conhecer, que lhe pedira em namoro – e tagarelamos como se ainda
tivéssemos 14. Daí para nunca mais.
Uns óculos bem
engraçados ficam no cantinho esquerdo do baú. Uma lente azul, outra
amarela. Com cores carnavalescas, a borboleta pousa no meu nariz,
fazendo cócegas. Sorrindo, deixo-lhe ali. Aquelas lentes engraçadas
foram parar no baú depois do carnaval inesquecível que tive, o
primeiro e último. Tonta pelos primeiros goles de cerveja em minha
vida – ao lembrar disso sinto o gosto amargo dominar a boca -,
conheci um rapaz. Gostei dele por nada, ou será que foi por tudo?
Nem sei. O fato é que gostei dele. Das cantadas engraçadas e do
sorriso aberto, espontâneo como o céu desanuviado daquele dia.
Quando minhas amigas me chamaram para andar mais, deu-me o último
beijo, mais suave que os anteriores, e pôs seus óculos coloridos em
meu rosto: - Fica
muito melhor em você. Mas ainda quero de volta, tá?
Nunca devolvi. E
mesmo que o tivesse visto de novo não o teria feito.
Imprensada pelas
pernas dos óculos coloridos se encontra uma carta. Caso alguém
decida, um dia, invadir o santuário e abri-la, não encontrará mais
do que uma poesia construída em letras garranchosas, tipicamente
masculinas. A leitura não agradaria nenhum literato, mas, para mim,
é maravilhosa. Os versos, por mais simples que sejam, foram escritos
e dedicados a mim pelo meu primeiro namorado, do qual meu coração
ainda não se desvencilhou com completo.
As pequenas
lembranças do dia a dia ainda passeiam livremente na memória – o
nervosismo mútuo no primeiro beijo, nós dançando alegres na chuva
em frente ao shopping, os passeios noturnos à beiramar envoltos por
uma atmosfera fria e aconchegante, as brincadeiras na cama. Mesmo
depois de tanto tempo, ainda não sei porque fomos em caminhos
separados; mas fomos, e restaram apenas as lembranças felizes. Elas
são tão fortes que às vezes tenho certeza de que ele está
pensando em mim, e seu cheiro invade o quarto – e eu choramingo.
Um CD jaz no fundo
do baú. Ganhei o objeto numa viagem ao interior do pantanal, a
primeira que fiz sozinha. Havia decidido num ímpeto de jovialidade
que iria só e fiquei extremamente animada até que o grande dia
finalmente chegou. Fui para o aeroporto cheia de receios ao imaginar a
solidão na qual estaria me enclausurando nos dias vindouros.
Enquanto esperava a hora de embarcar, sentei ao lado de um rapaz de
cabelos desgrenhados que dedilhava um violão; ele cantava baixinho e
as notas fluíam com naturalidade, tornando o ambiente leve.
Começamos a
conversar sobre o livro que eu estava lendo (Martha Medeiros, se não
estou enganada). Tudo se desenrolou naturalmente, e logo ele estava
falando das viagens que tinha feito e, envergonhada, confidenciei-lhe
o medo que eu sentia em estar desacompanhada ali. Ele me reconfortou
e falou o quanto eu aproveitaria aqueles momentos de solitude – e a
segurança em sua voz me fez trouxe confiança. Como lembrança às
palavras, deu-me um CD da banda na qual era vocalista. Ainda hoje,
quando o ouço, consigo experimentar a calma que pairou sobre mim
após a conversa.
Todas as memórias
surgem assim, de uma pequena lagarta, nunca da mesma cor – pois
onde já se viu os dias serem da mesma cor? E aos poucos elas se
tornam casulos e se perdem na memória. Algumas pessoas os perdem
entre folhas e galhos, e nunca mais os encontram. Mas os meus sempre
aparecem e começam sua transformação feérica. E então surgem
elas, de início delicadas, espreguiçando-se em meu corpo e deixando
suas minúsculas pernas se esticarem e ganharem força. Abrem as asas
imponentes. Por um momento não sabem bem o que fazer com aquele
aparato tão belo, de mil e uma tonalidades, e ficam estáticas
sentindo o mundo plenamente pela primeira depois de tanto tempo
enclausuradas.
Em meus ombros,
incertas sobre o que são ou o que estão fazendo, elas levantam o
primeiro voo. Suas asas se movem desajeitadas, mas nem bem alguns
segundos passam e elas já sabem perfeitamente o que são – e
voejam graciosamente em torno da mim, deixando rastros de sua beleza
infinita. Como fadas, trazem-me uma felicidade sublime, e desenhadas
em suas asas vejo as dezenas de recordações que me são tão caras,
que me fizeram sentir o gosto doce da vida a cada vez que inspirei.
A cada objeto que
seguro entre meus dedos finos surge uma nova borboleta com asas tão
deslumbrantes quanto das anteriores, e ela se junta ao deslumbrante
panapaná naquela dança espiritual. E eu me regozijo no rito
ancestral, até que todas minhas células estejam vibrantes de
felicidade e energia.