Ed amassou o cigarro com a sola do sapato. Apagar um cigarro antes de termina-lo era, até o momento, a vigésima primeira coisa que mais odiava no mundo, logo depois de trocar de cueca todos os dias e de chamarem biscoito de bolacha. Tinha dificuldades em conseguir um fumo, já que não tinha nem idade suficiente para compra-los, o que tornava quase pecado o ato de os jogar fora assim. Mas faltava pouco para chegar em casa, e os vizinhos poderiam comentar para a mãe se o vissem com um na boca – ‘malditos, um bando de gente fofoqueira sem nada pra fazer, ficam o dia inteiro vigiando a vida dos outros’, pensava.
Entrou na ruela de casa e avistou Eleonora e Carmem, duas mulheres aposentadas, que passavam o dia conversando e vendo a movimentação da rua. Xingou baixinho ao passar por elas. A caminho de casa, retirou um frasco de perfume da mochila e se banhou nele. Levara uma bronca semanas atrás por ter aparecido com cheiro de cigarro, mesmo jurando que os amigos que estavam fumando, e não ele. Agora tomava mais cuidado. Se a mãe sabia que ele continuava fumando, não demonstrava.
Abriu a portinhola que dava acesso aos terrenos da casa, com um pequeno jardim na entrada e um curto caminho de pedras. Fechou o portão atrás de si e andou até a porta de madeira. Ela estava entreaberta. Olhou para os lados, procurando algum sinal da mãe pela rua, mas não encontrou nada além das ‘duas velhas fofoqueiras’.
Empurrou a porta e encarou a sala escura. Deu alguns passos para dentro e observou o contorno dos móveis através da parca luz que atravessava a cortina pesada. Como não encontrou nada fora do lugar, foi até a cozinha. Seus olhos se arregalaram ao ver a bagunça. ‘Que merda aconteceu aqui?’, perguntou-se, andando por entre os pratos quebrados e as panelas jogadas no chão. Chegou até a geladeira, que tinha sua porta escancarada e estava rodeada por restos de comida e embalagens vazias.
Caminhou pela cozinha em silêncio, achando que alguém tinha entrado ali e comido tudo o que tinha. Algum mendigo, talvez? Tinha que chamar a polícia, isso sim. Quando começou a caminhar para a sala, ouviu um barulho vindo de um dos quartos. Talvez ele ainda estivesse ali, roubando as coisas da casa, ou... Onde diabos estava sua mãe? Sentiu seu peito apertar.
Ed recolheu uma das facas no chão. Sua mão tremia. Ele lutava para deixa-la firme, mas parecia impossível naquele momento. Mil coisas vinham à sua cabeça, entre imagens da sua mãe chorando e de um homem maltrapilho sobre o corpo inerte da mãe, o sangue escorrendo sobre os lençóis outrora tão brancos. Sentiu seus olhos se anuviando e os dentes batendo forte, até que decidiu ver o que estava acontecendo no outro cômodo. Mordeu seu lábio inferior com força, até feri-lo, e foi para o quarto de onde o barulho saíra.
Ia devagar, em parte para não fazer barulho, em outra porque achava que acabaria mijando nas calças se fosse mais rápido. Chegou à porta do quarto e viu sua mãe sentada na cama. Tinha algo de estranho em seu olhar – encaravam a parede, mas estavam tão desfocados que parecia que não viam nada. Mais estranho ainda: ela estava nua sobre a cama, com todos os pormenores que ele sempre preferira ignorar a existência à mostra. Sobre o seu colo estava uma travessa de frango assado, que ela, com o óleo escorrendo pelo braço, levava em pedaços grandes à boca e os engolia quase sem mastigar.
- Mãe! Que porra tá acontecendo?! A senhora tá louca? Vai vestir alguma coisa, pegar um prato, sei lá! – Saiu andando para o banheiro enquanto esbravejava, atônito com a situação. – Puta que pariu!
Só percebeu que ainda estava com a faca em mãos quando entrou no banheiro. Largou-a em cima do vaso e tirou a roupa. Não sabia o que tinha acontecido, mas estava claro que a mãe estava abalada. Imaginou que alguém da família, talvez uma das tias, tivesse morrido. Mas mesmo assim, não explicava aquele comportamento absurdo. Entrou no box, ligou a ducha e deixou a água quente escorrer pelo seu corpo magricela. Por um segundo, Ed considerou se masturbar para afastar aqueles momentos bizarros da cabeça, mas percebeu que não conseguiria ‘bater uma’ por algum tempo.
Depois de quase dez minutos, desligou o chuveiro e saiu do box. Enxugava-se com lentidão, pensando em ligar para alguém da família. Talvez existisse histórico de loucura na família. Explicaria muita coisa, pelo menos. De repente, a porta se abriu e sua mãe entrou no banheiro.
- Bosta! Sai daqui! Não vê que tô aqui dentro?!
Ela o observou com os olhos vazios, e ele soube que ela não o via de verdade. Abriu a boca, lambeu os lábios e se jogou contra o filho. Seus braços rechonchudos o agarraram e com o peso ele caiu para trás, machucando as costas e a cabeça na parede. Ele tentava afastá-la e gritava por ajuda, mas ela reagia cada vez com mais violência. Suas unhas arranhavam a pele de Ed e o sangue a deixava mais afoita. Em dado instante, ela pousou as duas mãos sobre o rosto do filho e, mesmo com resistência, mordeu o seu ombro esquerdo. A dor e o horror que sentiu quando viu um pedaço da sua carne ser arrancada e mastigada pela própria mãe o fez gritar ainda mais alto, machucando a própria garganta com a intensidade.
Sua boca tremia. Poderia ser por um misto de sensações, entre pânico, medo e nojo; mas, naquele exato instante, tudo o que sentia era o terror primitivo ecoando pelo seu corpo. Sem saber o que fazia, esticou a mão e agarrou a faca sobre o vaso. Com toda a força que tinha, desferiu múltiplas facadas no corpo da mãe, ainda gritando, como se estivesse em um filme ao lado do Gerard Butler, gritando por Esparta. Mas não era um filme.
Depois de esfaquear o corpo da própria mãe, Ed a jogou para trás. Sentou-se contra a parede, tremendo convulsivamente. Procurou pela faca, mas percebeu que ela havia desaparecido. Talvez tivesse caído no chão ou ficado presa na carne da mulher que o dera à luz, da mulher que o amara, da mulher que arrancara um pedaço do seu ombro. Se Ed conseguisse pensar em algo, se tivesse visto aquela cena num filme, poderia até acha-la interessante por trás da inquietação que lhe causaria. Em meio à cena, o terror empurrara toda lógica ou resquício do velho Ed ao esquecimento, e seu corpo reagia apenas com lágrimas e tremores.
Observou o corpo da mãe jogado sobre o chão frio. Ela ainda estava suja de comida, mas agora o sangue também manchava a sua pele negra. E, em algum momento, ele percebeu que um líquido começava a vazar da sua boca, misturando-se ao sangue e gerando uma substância viscosa. O mesmo começou a sair do nariz da mulher, e logo das orelhas, olhos e – ele não percebeu por estar tão horrorizado com a cena – da vagina. O sumo esverdeado ganhou movimento próprio em alguns segundos e escorreu na mesma direção; ao invés de se espalhar pelo chão, como qualquer líquido que cai no chão, começou a ganhar formato vertical. Em poucos segundos, a quase-criatura já tinha um metro de altura. Não tinha olhos, nem cabeça – era apenas uma massa viscosa e fétida erguida no meio do banheiro-geralmente-tão-limpo-mas-não-hoje de uma casa do subúrbio daquela cidadezinha-geralmente-tão-comum-mas-não-hoje.
Apoiando-se na parede, começou a se levantar, mas suas pernas tremiam tanto que não conseguiu se mover. A quase-criatura, mesmo pairando num estado que biólogos dificilmente saberiam dizer se constituem um ser ou um não-ser, percebeu a movimentação. Dezenas de tentáculos surgiram na sua superfície e prenderam-se à pele do garoto. Quando tentou correr, ele caiu no chão, e a substância gosmenta atirou-se em cima dele, cobrindo-o. Ele tentou gritar, mas assim que abriu a boca, a substância a invadiu - e ele sequer se incomodou com o gosto de lixo da criatura, pois o sumo escorreu por sua garganta, arranhando-a e dividindo-se pelo estômago e pulmões. O que não conseguia entrar por ali, encontrou outros caminhos: o nariz e os olhos ardiam. Quase perdia a consciência, mas a sorte não estava do seu lado no dia. Parte da gosma encontrou sua uretra e invadiu o minúsculo vaso, vencendo o caminho e rasgando seu ‘pau’ por dentro; e o resto do líquido, com mais velocidade, encontrou seu ânus e fez o caminho inverso, atravessando-o com rapidez. Em poucos instantes, a quase-criatura o preenchera por completo.
Depois de uma hora, ele deu o primeiro sinal de vida. Levantou-se no banheiro maculado pelo quase-ser. Já não sentia mais dor. Ao encarar a mãe no chão, também não sentiu remorsos. Sentia fome. Sim, fome. Agachou-se ao lado do cadáver, entendendo aos poucos como se movimentar, e enterrou as mãos na barriga flácida, em busca de alimento para o novo eu.