Quando
criança, Paulo sempre fora difícil.
Era
aquele tipo de moleque que pulava o muro do vizinho depois que escurecia e
todos iam dormir só para fazer passos de lama (que ele jurava de pés juntos que
não eram dele e sim de algum monstro). Pior ainda: ele tinha a mania de passar
pelas casas das ruas paralelas apitando a campainha de alguma casa aleatória, e
então se escondia e ficava ouvindo o morador xingando as traquinagens. Certa
vez, num dia que percebeu que já tinha feito de quase tudo naquelas brincadeiras
de criança travessa, deixou suas bolinhas de gude no corredor de sua casa na
hora da moça que lá trabalhava limpar.
-
MOLEQUE MALDITO! NÃO AGUENTO MAIS!
Ouviu
os gritos histéricos da mulher, rindo-se escondido num dos armários para que
seu pai não o encontrasse depois daquela; afinal, ela poderia ter se machucado
bem mais do que aquela dorzinha nas costas que ficou durante o resto da semana.
Mesmo
assim, seus pais o mimavam. O enchiam de brinquedos modernos e, no natal,
ganhava o número equivalente à sua idade de presentes – e isso até seus 15 ou
16 anos, quando os pais se deram conta que mimo demais não cria filho...
Desde criança se
acostumara a barganhar os melhores presentes com os pais. Cartinha para o Papai
Noel? Jamais! Nem acreditava nisso. Era uma longa lista de games e robôs
caríssimos deixados em cima da mesa de trabalho do pai. E ainda tinha o olhar
de desafio estilo “quero-ver-você-reclamar-que-tá-caro”.
Levado por essa
irresponsável onda de ordenar e receber logo em seguida, foi um choque quando
seus pais morreram num acidente ainda quando jovem, com 19 anos e alguns
trocados. Rejeitado pelos poucos parentes que conhecia, foi obrigado a começar
a trabalhar para sustentar ao menos teto num quitinete caindo aos pedaços nos
cafundós-do-judas e um prato de comida no almoço.
Nem tinha como ser
diferente, não é? Ele mesmo soube disso, quando pensou nos anos de adolescência
rebelde que passou, gritando com todos e os pais lhe defendendo a todo custo.
Ou quando, no final do terceiro ano do ensino médio, anunciou com todo orgulho
na mesa de jantar que não ia mais estudar bosta nenhuma e que seria artista
dali em diante. Bom, nunca soube bem o que era arte antes disso (e mesmo
depois, arrisco-me a dizer), mas iria dar um jeito. Afinal, não deveria ser tão
difícil assim tocar um violão ou jogar umas tintas aqui e ali ou escrever – até
porque se um escritor já ficou famoso por tudo que escreveu até seus 20 míseros
anos, ele ainda tinha muito tempo pra aprender a arte.
Mas nem foi dessa
forma, também. Acabou por passar os dias assistindo televisão, fumando na
esquina com uns caras e jogando pelada nos fins de semana, quando dava pros
amigos mais antigos.
Acordar, trabalhar,
comer, trabalhar, dormir, etc. Ah! Um namoro ou outro depois do expediente no
supermercado e aos sábados. Domingo não. Domingo era exclusivo da cerveja com
os amigos, daquele pagode na esquina e de futebol na televisão. Envolvido nisso
tudo, nem viu o tempo passando.
Percebeu finalmente quando
Bê (apelido do filho) nasceu. Sem mais nem menos ele já estava morando com a
mãe do menino, Viviane, com quem costumava sair apenas às quintas, que era “pra ter espaço pra todas”, dizia aos
amigos. Como foi entrar naquela enrascada? Mas nem era homem de reclamar das
coisas, e nem tinha mesmo motivos pra isso. Viviane era direita e jeitosinha, o
que todo homem poderia pedir a Deus. Seu filho, um anjo, diferente dele quando
moleque.
Só se sentia mal por
não poder dar brinquedos legais pro menino e aquele anel caro que sabia ser
desejo de toda mulher, da infância à maturidade. Porém tempo para se lamentar
sempre esteve em falta pra qualquer trabalhador. O jeito era seguir em frente,
sempre em frente, senão amanhã não teria nem brinquedo legal, nem anel caro,
nem feijão com arroz e bife.
E o natal já chegava
pela sétima vez desde que Bê nascera. Comprara pro menino um carrinho bem
elegante com tudo o que conseguira juntar – dois meses com apenas quatro
carteiras de cigarro e cerveja só num domingo, porque era aniversário da
Marcinha, amiga de longa data de Viviane. Quando chegou em casa com aquele
presente, sentia-se plenamente feliz em dar ao seu filhote aquele presente.
Sabia que o menino era super prestativo com todo mundo e comportado – até
ficava na biblioteca da escola pública lendo quadrinhos sempre que podia.
Aquelas traquinagens que ele mesmo fazia quando criança jamais aconteciam, ao
menos não pelas mãos de Bê.
‘Muito comportado, o Bê. E gosta de ler, cê sabe? Gosta muito! Fica
quase todo dia na escola lendo’, dizia sempre que lhe perguntavam sobre o
filho, orgulhoso.
No meio da madrugada do
dia que precede o natal, depois que todos haviam ido dormir, foi até a sala e
deixou o único presente que pudera comprar embaixo da árvore de natal meio
capenga que montara, comprada de segunda mão de uns vizinhos. Voltou ao seu
quarto e se deitou ao lado da mulher.
Ploft!
Alguma coisa caiu na
sala. ‘Mas que droga! Será rato?’,
pensou, levantando-se imediatamente. Pegou a vassoura atrás da porta, pronto
para dar umas boas batidas em cima do filho-da-mãe que estava andando pela casa
a tamanhas horas da noite. Abriu a porta devagarzinho e observou.
Monte de xingamentos
passaram pela sua cabeça, nenhum que eu vá repetir aqui, mas todos tinham a
mesma ideia de “diacho”. Tinha uma criatura de um metro e meio parado em frente
à árvore de natal. As roupas eram bem parecidas ao que sempre vemos por aí em
figuras do Papai Noel. Mas aquilo não era o velhinho sorridente nem pelo...
Bom, nem pelo diacho! A criatura era esverdeada e tinha uma pele estranha,
escamosa, talvez.
Pensou seriamente em
sair do quarto e acertar umas boas vassouras naquele ser d’outro mundo, mas
frouxo do jeito que era e sem papai nem mamãe pra comprar um
brinquedo-exterminador-de-criaturas-verdes, ficou parado atrás da porta com a
vassoura na mão, pronto pra voar pro quarto do filho, pegá-lo e sair correndo
com o menino nos braços. A mulher que se virasse – ela sabia correr mesmo.
Viu a criatura bisonha
se curvando e mexendo em alguma coisa perto da árvore. Paulo se lembra
perfeitamente do seu último pensamento: ‘Pelo amor de Deus, não leva o
brinquedo do meu filhote!’. Isso foi segundos antes da criatura se virar em sua
direção e mostrar aquele sorriso aterrorizante, de dentes maltratados, e olhos
completamente negros constrastando com a pele verde reptiliana.
BUM!,
desmaiou.
No
outro dia, Paulo só sentiu uns tapas leves em seu rosto. Viviane o arrastara
para longe da porta e agora o acordava, sorriso largo e lágrimas nos olhos.
-
Olha, não sei como você conseguiu dinheiro pra isso, mas acho que nunca vi nosso
filho tão feliz quanto hoje!
Virou
a cabeça para olhar pela porta, ainda deitado no chão, e viu seu menino no chão
com vários presentes debaixo da árvore, parecendo extasiado. Nas mãos do filho,
viria a saber depois, uma carta:
Caríssimo
Breno,
É
com prazer que venho lhe trazer alguns dos pedidos que fizeste pra mim por
carta. Saiba que fiquei muito feliz por teres sido tão bom menino esse ano.
Espero que continues sempre assim. Mande lembranças ao teu pai, que hoje
recebeu o primeiro presente de mim também.
Que
te divirtas muito,
Papai
Noel.