Enquanto corria por aquelas ruas escuras no subúrbio de
São Luís, Paulo pensou que nunca se imaginara numa situação daquelas. Já tinha
cogitado várias hipóteses, como todo bom paranoico, sobre o fim do mundo em
2012. Aquela, porém, não estava nem em seu top cinco de possibilidades aceitáveis:
guerra nuclear depois de uma discussão egocêntrica sobre o cabelo de um famoso
entre presidentes; pandemia de algum vírus ou bactéria super-resistente e para
às quais ninguém é imune; alienígenas em busca de novos lugares para dominar
depois de terem feito merda em seu próprio planeta; ataque zumbi por causa de
um cientista maluco e experimentos para reavivar tecido morto; e, é claro,
desastres naturais causados por uma movimentação anormal das placas tectônicas
e descongelamento das calotas polares.
Encostou-se ao muro de uma casa qualquer, desconhecida
para ele por quase nunca andar por aquelas bandas de sua cidade natal.
Respirava fundo, extremamente cansado depois de uma corrida de quinze minutos
sem pausas. Não que fosse sedentário. Aliás, desde seus dezessete anos fazia
academia, natação e ainda corria aos sábados e domingos – sem comprometer tempo
para ler e cogitar novas ideias absurdas.
Ouviu algo se quebrando dentro da casa e o grito agudo de
uma menina, provavelmente com menos de dez anos de idade. Assustado, mas
decidido a salvar quem pudesse, foi até a porta da casa. De modo mais furtivo
que pôde, empurrou a porta e foi entrando, sem deixar de prestar atenção para
qualquer movimento ao seu redor.
Silencioso, chegou à frente da porta entreaberta e olhou
para dentro da casa. Por pouco não soltou um palavrão ao ver a enorme criatura
que andava dentro da casa, ao longe. Embora já tivesse visto algumas vezes as
criaturas, ainda não tinha se acostumado àquela visão aterradora. Um animal de
dois metros de altura, corpo robusto sobre duas patas de cachorro, andando
desajeitadamente sobre duas patas – e isso era apenas a parte boa daquela
imagem. O pior era ter que encarar aqueles dentes gigantescos, imersos em
saliva densa escorrendo pela boca escancarada, e garras do tamanho de um dedo. Lobisomens.
Quem poderia imaginar?
O rapaz procurou rapidamente pela ampla sala, de um lado
a outro. Encontrou uma menina de cabelos encaracolados, encolhida debaixo do
balcão onde ficava uma cesta de frutas e um rádio. Não conseguiu ver suas
feições direito por causa da escuridão, mas não tinha como ela não estar
assustada. Fez um sinal com a mão, lento. Ao perceber que a garota não dava
nenhuma resposta de vida além dos eventuais tremeliques de medo, voltou a
observar o monstro.
Passo a passo, ele entrou num corredor pela casa e sumiu
de vista. Paulo se moveu alguns segundos depois, após ter certeza que a
criatura não voltaria logo. Andou agachado em direção à garota, com o indicador
sobre os lábios, pedindo silêncio. Não sabia se ela lhe entendia, já que não se
comunicava nem com um sinal. Ao chegar nela, envolveu seu pequenino braço. Seus
olhos se cruzaram pela primeira vez. Mais perto dela, viu que estava coberta de
sangue – mas aparentemente nenhum proveniente dela.
-
Calma... O titio vai te levar pra longe do lobo-mau, tá?
–
sussurrou no ouvido da menina enquanto a abraçava forte.
Trazendo-a de encontro ao seu peito, começou a andar de
volta à porta. Mas um barulho fez todo seu corpo congelar. A menina se apertou
até que ele pode sentir seus rápidos batimentos cardíacos, acelerados de tanto
medo. A criatura parecia quebrar tudo nos outros cômodos e agora seus passos
voltavam em direção à sala. Arrastou-se de novo para debaixo do balcão,
segurando com força a criança.
Sem nenhum outro barulho além das pequenas batidas das
garras das patas posteriores do lobisomem de encontro ao chão, sabia
perfeitamente por onde a criatura passava. E ela chegava cada vez mais perto,
movendo e rasgando móveis. Ouviu todo o peso do lobisomem cair sobre o chão, e
deduziu que este tivesse se posto sobre as quatro patas. Percebeu que estava
chegando cada vez mais perto deles. Apertou a menina até quase sufoca-la,
tentando na verdade a proteger do terror que chegava. Medo.
Quando ele estava bem ao lado do balcão, sua respiração
forte já se fazendo ouvir, outro grito quebrou o silêncio absoluto da rua. Duas
mulheres passaram correndo, e as duas gritavam a plenos pulmões por socorro. O
bicho saiu correndo da casa sem pensar duas vezes e se juntou à caçada das duas
humanas, deixando que as outras duas presas escondidas permanecessem vivas,
escondidas na casa de classe média.
Paulo levou ainda alguns minutos para ordenar tudo o que
se passava em sua cabeça. Além do medo absurdo pela sua vida, várias outras
coisas pesavam em seu coração. O que havia acontecido com seus amigos e
familiares? Será que o resto do mundo estava consciente e nem os ajudaria? Como
chegar num lugar seguro? Onde estaria seguro?!
-
Meu nome é Paulo... Qual o seu nome? – perguntou, afastando-a de
seu abraço por um tempo, olhando-a nos olhos.
Depois de quase um minuto sem ouvir qualquer resposta
dela, percebeu que ela não conseguiria falar nada. Disse para ela ficar parada
ali até ele voltar, e então foi procurar suprimentos pela casa. Pegou uma
mochila num dos quartos, achou uma lanterna funcionando no mesmo lugar. Pegou
um conjunto de roupas para a menina e voltou para a cozinha, onde adicionou aos
seus itens alguma comida para os dois – inclusive um chocolate para tentar
alegrar a menina sem nome.
Voltou para a sala escura, guiado apenas pela frágil
iluminação que vinha da lua e passava pelas janelas e porta aberta. Encontrou a
inerme menina no mesmo lugar, agarrando seus joelhos e alerta para ameaças.
Abaixou-se perto dela e lhe segurou pelas mãos.
-
Preciso que você me diga onde estão as chaves do carro... Tente se lembrar... –
falou, olhando direto nos olhos dela.
Ela pensou durante alguns segundos. Então, sem falar
única palavra, levantou-se e começou a puxar Paulo na direção do quarto de seus
pais. Caminhando lentamente, chegaram à porta do quarto, onde ela parou e
apontou uma escrivaninha do lado oposto de onde estavam. Estranhou por ela não
querer entrar ali, mas não forçou. O rapaz deu os primeiros passos em direção de
onde a chave provavelmente estava.
Estava tão focado na mesinha que não percebeu nada de
estranho até estar no meio do quarto. Percebeu então que as paredes estavam
cobertas de algum líquido estranho e que estava envolto por um cheiro forte,
asqueroso – sangue por todo lado. Olhou ao lado e viu os corpos estraçalhados
de um casal sobre a cama. Seu estômago se contraiu e ele sentiu o gosto ácido
lhe subir a garganta. Curvou-se sobre os joelhos. Não conseguia controlar a
vontade de vomitar, mas não tinha nada para expelir. Agora entendia o motivo de
ela não querer entrar ali. Há quanto tempo ela estaria ali escondida?
Depois de conseguir ficar em pé, chegou à mesinha e pegou
a chave, que estava na primeira gaveta. Tentando não olhar para os lados, saiu
do quarto e bateu a porta. Suava frio, sentindo um terrível mal-estar. Sua
cabeça doía quase tanto quanto podia aguentar e parecia que tudo girava ao seu
redor. Mas tinha que parecer forte, por ela.
-
Vamos nos esconder até amanhecer, tá? Eles não aparecem durante o dia nos
filmes... – falou, mais para si mesmo do que para a
menina.
Entraram na porta logo à frente, onde ele deduziu ser o
quarto dela. Primeiro pensou em fechar a porta com algo pesado, mas sabia que
qualquer coisa que ele pudesse arrastar não seguraria as feras. Fechou a
cortina e encostou a porta. Pegou vários lençóis e travesseiros e disse para ela
entrar no armário, onde a cobriu com tudo o que pode, deixando espaço
suficiente apenas para ela respirar. Escondeu-se, então, debaixo da cama, onde
adormeceu.
*****
Acordou com um barulho no quarto. Zonzo de sono, não
lembrava direito do que estava acontecendo na cidade, ao menos não nos
primeiros segundos pós-acordar. Olhou para o lado e viu pés humanos andando de
lá para cá, como se procurasse algo. Mas tinha algo de estranho ali, pois
aquela pessoa estava descalça.
-
Achou alguma coisa? – ouviu um homem de voz grossa, cheia de
agressividade, ribombar de fora do quarto.
-
Não. Tudo limpo! – o de dentro do quarto respondeu, saindo
correndo do quarto logo depois.
Paulo saiu debaixo da cama o mais silenciosamente que lhe
foi possível, levantou-se e foi até o armário. Encontrou-a encolhida, já
acordada e parecendo extremamente assustada. Agora que já estava de manhã,
podia vê-la com exatidão. Tinha negros cabelos encaracolados e um rosto bem
redondo, e provavelmente um sorriso lindo como de toda criança. Fez um sinal
para que ela fizesse silêncio e lhe tirou dali.
Encontrou sua mochila de provisões, abriu a janela e
verificou se tinha alguém vigiando do lado de fora da casa. Ao ver que a saída
não estava sendo vigiada, ajudou sua companheira a sair da casa pela janela e
pulou em seguida sobre a grama. Os dois lutavam para respirar o mais baixo que
pudessem para não chamar a atenção dos invasores. Deixou que ela entrasse no
carro, e então foi abrir a porta da garagem. Voltou para o carro rapidamente,
pois ouviu uma gritaria dentro da casa.
-
Idiota! Você não tá sentindo esse cheiro?! – rosnou o que parecia
ser o líder, seguido de um baque surdo e objetos se quebrando.
Ouviu a correria em direção da garagem. Ligou o carro e
partiu com ele, acelerando cada vez mais. Antes de sair da casa sentiu o baque
de um soco na lataria do carro. Já avançando veloz pela rua, viu quatro homens
aparecerem ao fundo da rua pelo retrovisor, correndo atrás dele. Ao seu redor,
a rua estava vazia, exceto pela sujeira, corpos e sangue – formando tudo numa
visão aterradora. Pensava já estar alucinando quando viu os homens mudando sua
forma, ficando maiores e ganhando pelos – lá ao longe. E então correram velozes
na direção do carro, mais rápido do que a máquina. Mortíferos.
-
Vai ficar tudo bem, tá? Tudo bem, tudo bem... –
falava sem parar, lágrimas quase escorrendo por seu rosto sujo.
As bestas estavam alcançando o carro. Cinco metros. Três.
Bum! Uma delas tinha pulando para cima do carro e atravessado o teto com sua
força descomunal. Entremeados pelo barulho ensurdecedor de seus gritos, Paulo
perdeu a direção do carro e bateu contra um poste. Confuso. Caótico. Sentiu
algo lhe arrancando do banco e lhe jogando na rua, onde aterrissou com um forte
baque em suas costas. A dor era tanta que ele achou que havia quebrado alguma
costela.
Quando finalmente conseguiu focar os olhos, viu três
criaturas monstruosas paradas perto dele – seus dentes afiados melados de
sangue e sujos de terra. Entre eles havia um homem. Seu olhar era frio,
distantes, como se carregasse uma profunda tristeza. Em seus braços estava a
menina, lutando para se libertar de seu raptor.
-
Cara, solta ela... Solta ela... – suplicou o rapaz numa voz
chorosa. – É só uma criança!
-
Só uma criança? Ela ia crescer e se tornar uma de vocês! – vociferou
o homem-fera, de roupas sujas e rasgadas.
– Comprar. Usar. Destruir. Matar! É só isso que essa tua raça estúpida sabe
fazer. Estivemos séculos aqui, esperando que vocês melhorassem, tomassem alguma
consciência... Mas não! Pra nós já chega.
De início não soube se era apenas impressão, mas percebeu
que os olhos do homem mudavam gradualmente e que seu rosto se alongava. Em
poucos segundos seu corpo se curvava e ele ganhava pelos e garras, seus dentes
se modificavam. Em torno de um minuto a fera de dois metros pairava à sua frente,
avançando silenciosamente em sua direção.
-
Luíza! Luíza! Meu nome é Luíza! – foi o que Paulo ouviu por
último do chorar que teve como background
de sua morte.
O lobisomem se afastou do corpo de
Paulo, seus dentes cobertos de sangue e do pavor dos humanos. Junto dos outros,
inclinou sua cabeça e soltou um longo uivo. Uivou ao Sol, à Lua, à Terra, à
Mãe-Terra – não apenas nossa, mas também deles.