Eles sempre voltam - Parte I


Permanecer vivo se tornara um desafio quase impossível.


Milton e Duque estavam andando pela beira da estrada por quase oito horas seguidas e estavam esgotados. Ainda assim caminhavam, impelidos pelo sentimento mais basal que um animal pode ter: medo.

A mochila, carregada de comida, lanterna e outros utensílios, não deixara de pesar sobre as costas dos homens nem por um instante e tornava a jornada ainda mais complicada. Mas parar não era uma opção. Não quando tinham predadores tão eficientes à espreita. Tinham que encontrar um abrigo o mais rápido possível.

- Vamos continuar tentando chegar em Manaus?

Duque demorou um pouco para responder: - É o único plano que temos.

- E como sabemos que realmente tem alguém resistindo lá?

- Não sabemos.

Os dois continuaram a andar pela beira da estrada, calados. Aprenderam a economizar palavras – o silêncio, quebrado apenas pelo piar incessante das aves, lhes fornecia uma fina camada de segurança. De noite, as criaturas eram assassinos silenciosos, ao menos quando queriam sê-lo. Mas durante o dia, elas se tornavam mais humanas e menos animais, e aí não podiam se mover com a mesma facilidade – e assim faziam mais barulho, podendo ser escutadas com mais facilidade em meio à quietude.

Mesmo que estivessem cada vez mais cansados, não passavam sede ou fome. No meio da Amazônia seria quase impossível morrer de sede, conquanto uma boa água fresca tirada diretamente do igarapé lhe fosse suficiente. Comida também não era escassa – com um pouco de criatividade ou treinamento militar, uma pessoa conseguiria se virar com frutos, insetos, peixes e, vezemquando, até com um animal maior.

- Ainda tem água aí?

- Hum... Deixa eu ver...

Sem parar de andar, Milton deixou que a mochila saísse do ombro esquerdo e deslizasse até a sua frente, ainda pendurada no outro ombro. Começou a procurar um dos cantis que carregava, porém antes que pudesse encontrá-lo, um ronco atravessou o silêncio. Os dois se entreolharam rapidamente.

- Vem! Bora se esconder!

- E se for um de nós, Duque?

- Tu sabes melhor que isso, cara. Não tem mais dessa. Vem logo!

Antes mesmo de terminar de falar, Duque correu e entrou na floresta que se erguia à margem da estrada. O companheiro o seguiu sem demora, agachando-se ao seu lado atrás de uma grande árvore cercada por arbustos e embaúbas.

O barulho do motor aumentava a cada momento, e junto com ele também crescia a apreensão dos dois homens. Observavam a estrada com o coração acelerado, mas atentos ao que irromperia pelo leste a qualquer segundo. O som se tornou tão incômodo que seus ouvidos pareciam que iam explodir, e então viram uma moto vermelha atravessar a rodovia em alta velocidade. Mal puderam reparar na mulher que a conduzia – só puderam ver o curto cabelo branco contrastando com a pele mulata no vulto.

A tensão cedeu à medida que o som se afastou. Os dois voltaram a respirar normalmente e afastaram as mãos das armas que levavam presas no cinto: um facão na de Duque e um calibre 38 na de Milton. Por um momento aproveitaram o alívio de não terem sido descobertos, mas logo ouviram o som voltar a ganhar força e se tornar insuportável novamente. Os dois sacaram as armas e esperaram.

A moto voltou a aparecer na estrada e parou a uns dez metros de distância de onde estavam. Inconscientemente, eles começaram a respirar tão silenciosamente que mal poderiam ouvir suas próprias respirações. Observavam a cena, estáticos. A mulher desceu da moto com toda a calma, como um gato que sabia que a presa estava escondida em algum lugar perto, sem possibilidade de fuga.

Podiam observá-la com nitidez. Seu cabelo curto era pintado de branco e espevitado, lhe dando ares de punk. Seu rosto tinha as maxilas bem delineadas, que, junto com o arco maxilar, se unia em ângulo reto às têmporas. Sem batom ou qualquer outro adorno, seus olhos atraíam toda a atenção. Carregavam o sinal que os dois homens aprenderam ser de todos os membros da espécie dela e que os identificava prontamente sob a luz do dia. A pupila negra flutuava na órbita vazia, a íris tão branca quanto a lua.

Repararam que ela não carregava nenhuma arma consigo – o que era esperado, pois também sabiam que a maioria deles abominava as criações armamentistas dos seres humanos. Ela deu alguns passos pela estrada esburacada, observando com atenção a floresta que a cercava. Parecia sentir que tinha algo diferente no ar, mas talvez seu olfato não fosse tão apurado quanto após a transformação noturna.

Ela observou toda a extensão possível da floresta, no mesmo lado da estrada que eles se escondiam. Quando chegou na direção em que estavam, parou por segundos, que para eles pareceram longos demais.. O terror ganhou volume e seus corpos se encheram de adrenalina. Duque sentiu os pelos de sua nuca se eriçar e por um instante achou que ela o encarava. Milton estava pronto para correr; Duque para lutar.

Mas ela desviou os olhos. Sem ter achado nada de especial, subiu na moto vermelha. Ainda olhou por mais alguns segundos, não completamente satisfeita com a primeira inspeção, e seguiu viagem. Em poucos segundos, desapareceu de vez no horizonte, deixando os dois para sobreviver mais um dia.

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