Os dois seguiram pela floresta,
quietos. Ainda estavam alvoroçados depois de avistarem a lobanil à beira da
estrada e preferiram evitar qualquer encontro futuro, já que ela parecia ter
percebido que havia algo de errado na área. Os olhos da mulher ainda ressoavam
na cabeça de Milton e traziam inúmeras lembranças das últimas semanas, desde
que fugira de Tefé com outros sobreviventes, incluindo Duque.
Entravam
na terceira semana desde a fuga da pequena cidade, que ocorreu na manhã seguinte
à chegada dos lobos. O começo dos ataques, por outro lado, já ocorria no Brasil
há pelo menos duas semanas antes da invasão em Tefé. A cidade era isolada dos
grandes centros urbanos, onde os ataques se concentravam, o que lhes deu tempo
para fortificar a cidade como podiam. Mas pouco pôde ser feito pela cidade, já
que não sabiam direito o que enfrentavam devido à falta de comunicação com as
cidades maiores – apenas os rádios funcionavam bem depois dos primeiros dias de
ataque.
Nos
primeiros dias, o grupo decidiu encontrar locais de resistência, onde poderiam
se proteger e ajudar outros sobreviventes. Passaram dois dias seguindo o
caminho que os rios lhe ofereciam em direção a Manaus, com a ajuda de Seu Tico,
um velho pescador e navegador de sangue, e de um barco que encontraram no píer
da cidade. Mas a gasolina não os levou para muito longe, e encontrar mais combustível
para o motor se mostrou uma tarefa impossível para o grupo – as pequenas
comunidades no caminho estavam saqueadas ou, no pior dos casos, como
descobriram a custo da vida das irmãs Vanessa e Mariana, com novos habitantes.
Milton
não conseguia se esquecer das mortes que presenciara ou das pessoas que perdera
de vista nas fugas e lutas. Não conhecia a maior parte deles antes da invasão
lupina, mas há alguma coisa em sobreviver à morte juntos que constrói laços
fortes de companheirismo entre as pessoas. Em uma ocasião mais comum, duvidava
que tivesse se tornado próximo de um homem tão misterioso quanto Duque, por
exemplo. A voz de Duque atravessou o silêncio que reinava entre eles há quase
uma hora.
-
Olha! Tem uma estrada aqui!
Vendo
que o companheiro começava a caminhar em uma nova direção, cortando os cipós e
árvores no caminho, Milton procurou ver mais a frente. Por entre o contorno dos
galhos e folhas, que se uniam num grupo compacto, observou uma área aberta, sem
asfalto, a menos de vinte metros de distância. Já acostumados a atravessar a
mata densa, logo alcançaram a estrada.
Não
passava de um minúsculo caminho de terra batida. Algumas plantas daninhas já invadiam
a estrada devido à falta de uso.
-
Pra onde será que ela leva?
-
Não sei. Mas tem um monte de vilas pequenas por aqui. Talvez a gente encontre
uma casa vazia se a gente continuar por aqui. Quê que tu achas, Duk’?
Duque
puxou um par de binóculos da mochila e olhou nas duas direções, mas o caminho
sinuoso o impediu de ver muito além. Milton, por sua vez, abaixou-se e observou
de perto a terra: nenhum rastro de pegadas ou pneus.
-
Acho que a barra tá limpa. Olha, não tem marca nenhuma no chão.
O
outro assentiu e eles começaram a andar para o caminho oposto da estrada, com a
ajuda de uma bússola. Tinha servido ao exército anos atrás, e tudo o que
aprendera estava se mostrando útil naqueles dias.
No
céu, o sol já começava a perder a força, o que não era exatamente uma boa
notícia. A noite trazia consigo terrores que não compensavam o fim do calor;
ainda mais para pessoas que sequer tinham abrigo. Mesmo exaustos, eles sabiam
que tinham que continuar andando. E assim continuaram por mais meia hora, até
que Milton subiu uma elevação e, de repente, abaixou-se e fez sinal para que
Duque fizesse o mesmo.
- Tem alguém ali... – Sussurrou. –
Me passa os binóculos.
Depois de ter o equipamento em mãos,
levantou-se cuidadosamente sobre os antebraços. A areia quente lhe queimava os
braços, mas ignorou a dor. Através das lentes, viu uma senhora de cabelos
brancos que começaram a rarear sobre a pele escura, vestida com uma simples
camisola florida. Ela mexia no grande jardim que se erguia na frente da casa de
alvenaria. Analisou a mulher por vários minutos e só confirmou que ela não era
uma das criaturas quando viu seus olhos cinco vezes.
- Tem uma casa pequena e uma senhora
cuidando da horta. Ela não parece tão preocupada com a vida, não... E certeza
que não é um deles. Acho que não vieram incomodar por essas bandas.
- E aí, vamos lá? Talvez ela nos dê
abrigo por essa noite.
- Bom, ela parece bem calma. Talvez
seja seguro... Só vamos com calma, pra não assustar ela. – respondeu Milton.
Andaram em direção da casa com as
mãos vazias e levantadas. Não queriam que ela pensasse que eram saqueadores.
Ela, distraída com as plantas do terreno, não percebeu a presença dos estranhos
até que eles se pronunciaram:
- Com licença, senhora.
Ela se ergueu rapidamente. Não pareceu
assustada, já que não fez menção de correr ou se esconder, como os dois esperavam
que ela fosse reagir. Tinha uma dignidade no seu movimento quase empertigado. Ela
estava, no máximo, apreensiva quanto às intenções dos recém-chegados.
- O que vocês querem? – A pergunta
soou mais como uma exigência de resposta do que como um pedido.
- Não queremos problemas. Eu sou o
Duque e esse aqui é o Milton. A gente passou o dia todo andando na estrada
hoje, e só queríamos um lugar para passar a noite, se possível.
Ela os avaliou cuidadosamente os
dois rapazes, atenta para os olhos e para o que levavam nas costas e cintura. Não
parecia convencida. Limpou as mãos na barra do vestido, sujando-o de terra, e
aquiesceu.
- Podem passar a noite aqui, sim.
Tenho um quarto vazio. Mas não gosto de bagunça e quero os dois fora logo de
manhã.
Eles abriram um sorriso, aliviados
por terem uma casa para atravessar a noite. Dormir na floresta estava sendo
suas vidas a alguns dias e isso já os incomodava. Ali, podiam organizar seus
suprimentos e, com alguma sorte, cozinhar sementes e até descansar em uma boa
cama ou rede.
Contornaram o cercado da casa, feito
de arame farpado, mas que já caía aos pedaços, e entraram pelo grande portão
construído com vigas de madeira. Ao entrar no terreno, a mulher começou a andar
para dentro da casa, dando-lhe as costas, e eles a seguiram. A horta estava bem
cuidada. Grandes abacaxis e cerca com galhos de maracujá entrelaçando-se por
ela davam frutos vistosos, e várias flores amarelas, desconhecidas para os dois,
abriam-se em todos os cantos.
Antes de entrarem na casa, Duque viu
duas cruzes de madeira fincadas na terra, uma ao lado da outra, em uma área
onde plantas não cresciam.
- Vocês, garotos, podem me chamar de
Miranda.