A água escorreu pelo corpo de
Milton. Fazia tempo que não tomava um bom banho. Preferia ter um chuveiro
quente, mas não podia reclamar. Ter um banheiro e baldes de água limpa já
estava de bom tamanho. Carregou mais um dos baldes cheios e despejou o conteúdo
sobre a cabeça, devagar. Adorava a sensação.
Terminou o banho quinze minutos
depois, relutante, mas logo estaria na hora do jantar e tinha que ajudar a
anfitriã na cozinha. Vestiu-se ainda com o corpo úmido e pegou os baldes para
enchê-los novamente. Tinha que ajudar como podia na casa. Foi até o quarto que
Miranda tinha lhes oferecido e entrou. Duque estava sem camisa e se virou
rapidamente. Milton viu de relance uma cicatriz no peitoral, mas não achava que
aquilo era motivo suficiente para se esconder.
- Que isso, cara? Precisa ter
vergonha, não. – e jogou a toalha sobre uma mesinha de cabeceira.
Duque murmurou alguma coisa e vestiu
a camisa.
- Deixa que eu pego água no poço. –
respondeu, pegando os baldes da mão do companheiro e saindo do quarto.
Achou estranho, mas já estava
começando a se acostumar. Duque sempre agia de forma um pouco bizarra. Quando
todos olhavam para a esquerda, ele costumava olhar para a direita; quando todo
mundo só enxergava uma saída, ele via uma diferente através de um ângulo
inteiramente novo.
Terminou de se enxugar, atou a rede
nos armadores – imaginando se teria que brigar com Duque pelo direito de dormir
nela - e saiu para ajudar Miranda. Ela estava sentada na mesa central,
descascando uma cenoura. Milton entrou na cozinha e viu o fogão ao seu lado.
Uma panela cozia alguns ovos e, logo acima da panela, uma peneira com arroz era
aquecida pelo vapor.
- Tive que pensar em formas de
economizar o gás, né? Ele vai
acabar já, já, e aí nem sei o que vou fazer.
Puxou uma
cadeira e se sentou de frente para a mulher. Pegou uma faca em cima da mesa e
começou a descascar a segunda cenoura.
- E não tem
nenhuma cidade perto? Eu e Duk’ podemos tentar ir lá encontrar mais gás pra
senhora.
- Ter até
tem, mas não dá pra ir lá, não.
- Por quê?
Ela largou o
legume e a faca sobre a mesa, e levantou os olhos. Milton já tinha visto aquele
olhar muitas vezes desde que tudo começara. Carregava pesar, mas diferentemente
dos outros que vira, ainda tinha força.
- É muito
longe, rapaz. Vocês precisariam de uma bicicleta pra irem. Mas nem sei se a
cidade ainda está lá... Meu velho e meu filho foram, mas não voltaram.
Não soube o
que falar. Tinha se afastado da sua família há muito e mesmo antes ele já não
tinha notícias dos primos. Encarou Miranda. Queria dizer alguma coisa, mas não
sabia por onde começar, nem o que falaria depois de começar.
- Sentimos
muito, Miranda. – a voz de Duque interrompeu o silêncio inoportuno. O homem
entrou na cozinha, aproximou-se de onde a mulher estava sentada e colocou suas
mãos nas costas dela. – Mesmo que não possamos ir lá, vamos fazer o que puder
pra deixar a casa em ordem pra você.
Ele sentou
ao lado do amigo e começou a cortar os legumes. Milton abaixou os olhos e
voltou à tarefa. Sentia-se culpado por não ter falado nada, mas sempre tivera
essa barreira para lidar com a emoção dos outros. Ainda tinha muito que
aprender na vida, principalmente se quisesse ajudar os sobreviventes. E talvez
pudesse aprende isso com Duque. Mesmo caladão, ele sabia exatamente o que falar
na hora certa e parecia entender melhor o que as pessoas passavam.
- A senhora
quer nos falar mais deles?
Miranda
olhou para Duque. Seus olhos continuam carregando a mesma força, mas agora
pareciam enevoados com as inúmeras lembranças que navegavam para a superfície.
Ela sabia que conseguia se virar sozinha, mas ter outro ser humano para
conversar era uma benção que ela não deixaria passar na ocasião. Ainda
carregava os fatos recentes no peito e falar sempre lhe ajudara.
- Ah, o Zé
era uma peça. Não falava muito, não. Trabalhava muito na nossa roça e pescava pra
vender na cidade. Mas gostava mesmo é de jogar dominó e beber um goró com uns
beberrões na cidade, aí chegava fedendo a cachaça e queria me abraçar. Mas olha
só, tinha jeito não. Eu enxotava ele pro banheiro.
E continuou
contando seus causos, suas vidas – as mãos ainda se moviam rapidamente com a
faca na mão, como se ela estivesse concentrada na tarefa, mas era óbvio para
quem visse o sorriso em sua boca e as poucas lágrimas que brotava dos seus
olhos que sua mente pairava no passado.
A noite
chegou por entre histórias de peixes elétricos e jacarés, das travessuras de
criança e da moçoila que o filho resolveu namorar anos depois de tombar do
cajuzeiro - pois naquele instante, o tempo se tornara uma ilusão. Eles riam das
histórias e Milton até contou algumas da própria infância.
Começaram a
jantar acompanhados de sorrisos. Enquanto levavam ovos cozidos e fatias de
cenoura às bocas alegres, eles acharam que o mundo ia começar a se ajeitar dali
em diante e que nenhum mal jamais voltaria a lhes encontrar.
Mas o
anoitecer trouxe mais do que a lua e as estrelas. Em certo momento, perceberam
uma sombra atravessar a janela e sobrepujar a luz que as velas traziam. Os três
se entreolharam, calados. Os homens levaram as mãos para a cintura, mas as
armas não estavam lá. Eles se levantaram o mais furtivamente que puderam – o
único barulho audível eram as respirações profundas.
Logo que se
puseram de pé, a porta da cozinha caiu no chão com um estrondo forte e se fez o
contorno da criatura lupina. Sobre as duas patas, o lobo era muito maior do que
qualquer homem. Seu corpo robusto era coberto por pelos e o focinho era
proeminente, deixando os dentes gigantescos aparecerem por toda a extensão. Mas
sem dúvida o pior eram os olhos – completamente inumanos.
O lobisomem
fitou as presas por um segundo e, depois, seu uivo ecoou quilômetros de
distância, através da floresta e até a cidade onde os corpos do marido e do
filho de Miranda jaziam.