Eles Sempre Voltam - Parte III

A água escorreu pelo corpo de Milton. Fazia tempo que não tomava um bom banho. Preferia ter um chuveiro quente, mas não podia reclamar. Ter um banheiro e baldes de água limpa já estava de bom tamanho. Carregou mais um dos baldes cheios e despejou o conteúdo sobre a cabeça, devagar. Adorava a sensação.

Terminou o banho quinze minutos depois, relutante, mas logo estaria na hora do jantar e tinha que ajudar a anfitriã na cozinha. Vestiu-se ainda com o corpo úmido e pegou os baldes para enchê-los novamente. Tinha que ajudar como podia na casa. Foi até o quarto que Miranda tinha lhes oferecido e entrou. Duque estava sem camisa e se virou rapidamente. Milton viu de relance uma cicatriz no peitoral, mas não achava que aquilo era motivo suficiente para se esconder.

- Que isso, cara? Precisa ter vergonha, não. – e jogou a toalha sobre uma mesinha de cabeceira.

Duque murmurou alguma coisa e vestiu a camisa.

- Deixa que eu pego água no poço. – respondeu, pegando os baldes da mão do companheiro e saindo do quarto.

Achou estranho, mas já estava começando a se acostumar. Duque sempre agia de forma um pouco bizarra. Quando todos olhavam para a esquerda, ele costumava olhar para a direita; quando todo mundo só enxergava uma saída, ele via uma diferente através de um ângulo inteiramente novo.

Terminou de se enxugar, atou a rede nos armadores – imaginando se teria que brigar com Duque pelo direito de dormir nela - e saiu para ajudar Miranda. Ela estava sentada na mesa central, descascando uma cenoura. Milton entrou na cozinha e viu o fogão ao seu lado. Uma panela cozia alguns ovos e, logo acima da panela, uma peneira com arroz era aquecida pelo vapor.

- Tive que pensar em formas de economizar o gás, né? Ele vai acabar já, já, e aí nem sei o que vou fazer.

Puxou uma cadeira e se sentou de frente para a mulher. Pegou uma faca em cima da mesa e começou a descascar a segunda cenoura.

- E não tem nenhuma cidade perto? Eu e Duk’ podemos tentar ir lá encontrar mais gás pra senhora.

- Ter até tem, mas não dá pra ir lá, não.

- Por quê?

Ela largou o legume e a faca sobre a mesa, e levantou os olhos. Milton já tinha visto aquele olhar muitas vezes desde que tudo começara. Carregava pesar, mas diferentemente dos outros que vira, ainda tinha força.

- É muito longe, rapaz. Vocês precisariam de uma bicicleta pra irem. Mas nem sei se a cidade ainda está lá... Meu velho e meu filho foram, mas não voltaram.

Não soube o que falar. Tinha se afastado da sua família há muito e mesmo antes ele já não tinha notícias dos primos. Encarou Miranda. Queria dizer alguma coisa, mas não sabia por onde começar, nem o que falaria depois de começar.

- Sentimos muito, Miranda. – a voz de Duque interrompeu o silêncio inoportuno. O homem entrou na cozinha, aproximou-se de onde a mulher estava sentada e colocou suas mãos nas costas dela. – Mesmo que não possamos ir lá, vamos fazer o que puder pra deixar a casa em ordem pra você.

Ele sentou ao lado do amigo e começou a cortar os legumes. Milton abaixou os olhos e voltou à tarefa. Sentia-se culpado por não ter falado nada, mas sempre tivera essa barreira para lidar com a emoção dos outros. Ainda tinha muito que aprender na vida, principalmente se quisesse ajudar os sobreviventes. E talvez pudesse aprende isso com Duque. Mesmo caladão, ele sabia exatamente o que falar na hora certa e parecia entender melhor o que as pessoas passavam.

- A senhora quer nos falar mais deles?

Miranda olhou para Duque. Seus olhos continuam carregando a mesma força, mas agora pareciam enevoados com as inúmeras lembranças que navegavam para a superfície. Ela sabia que conseguia se virar sozinha, mas ter outro ser humano para conversar era uma benção que ela não deixaria passar na ocasião. Ainda carregava os fatos recentes no peito e falar sempre lhe ajudara.

- Ah, o Zé era uma peça. Não falava muito, não. Trabalhava muito na nossa roça e pescava pra vender na cidade. Mas gostava mesmo é de jogar dominó e beber um goró com uns beberrões na cidade, aí chegava fedendo a cachaça e queria me abraçar. Mas olha só, tinha jeito não. Eu enxotava ele pro banheiro.

E continuou contando seus causos, suas vidas – as mãos ainda se moviam rapidamente com a faca na mão, como se ela estivesse concentrada na tarefa, mas era óbvio para quem visse o sorriso em sua boca e as poucas lágrimas que brotava dos seus olhos que sua mente pairava no passado.

A noite chegou por entre histórias de peixes elétricos e jacarés, das travessuras de criança e da moçoila que o filho resolveu namorar anos depois de tombar do cajuzeiro - pois naquele instante, o tempo se tornara uma ilusão. Eles riam das histórias e Milton até contou algumas da própria infância.

Começaram a jantar acompanhados de sorrisos. Enquanto levavam ovos cozidos e fatias de cenoura às bocas alegres, eles acharam que o mundo ia começar a se ajeitar dali em diante e que nenhum mal jamais voltaria a lhes encontrar.

Mas o anoitecer trouxe mais do que a lua e as estrelas. Em certo momento, perceberam uma sombra atravessar a janela e sobrepujar a luz que as velas traziam. Os três se entreolharam, calados. Os homens levaram as mãos para a cintura, mas as armas não estavam lá. Eles se levantaram o mais furtivamente que puderam – o único barulho audível eram as respirações profundas.

Logo que se puseram de pé, a porta da cozinha caiu no chão com um estrondo forte e se fez o contorno da criatura lupina. Sobre as duas patas, o lobo era muito maior do que qualquer homem. Seu corpo robusto era coberto por pelos e o focinho era proeminente, deixando os dentes gigantescos aparecerem por toda a extensão. Mas sem dúvida o pior eram os olhos – completamente inumanos.

O lobisomem fitou as presas por um segundo e, depois, seu uivo ecoou quilômetros de distância, através da floresta e até a cidade onde os corpos do marido e do filho de Miranda jaziam.

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