Por
um segundo, todos olharam paralisados para o monstro que invadira a casa.
Ninguém sabia o que fazer.
Mas
logo o lobisomem deu dois passos à frente e, com uma patada brusca, jogou
Miranda para o lado. Isso os acordou instantaneamente e cada um foi para o seu
lado. O lupino fez menção de ir em direção de Miranda, mas Duque se jogou
contra o corpo monstruoso do invasor para contê-lo. Os dois lutaram por poucos
segundos - o lobisomem segurou firmemente Duque com um dos braços e o ergueu
até que seus olhos se encontraram.
Duque
encarou a cena como se fosse a sua última. Estava hipnotizado por aqueles olhos.
Mesmo que a aparência fosse completamente diferente dos olhos de qualquer ser
humano, eles carregavam um quê de humanidade. Porém, naquele instante, a raiva estava
estampada no olhar quase-humano e ela fazia o horror ecoar por todo o corpo de
Duque.
Repentinamente, o lobisomem rugiu e jogou o
homem contra a parede. Sentiu uma dor aguda percorrer as costas e sua visão ficar
turva. À sua frente, conseguiu enxergar o contorno de Miranda através da
escuridão. O braço dela estava erguido na direção do lobisomem, mas Duque não viu
a faca que ela segurava cravada no abdômen da criatura. Levantou-se para ajudá-la,
mas os efeitos do baque ainda se faziam presentes, e ele cambaleou e caiu
encostado na parede.
Furioso com o ataque repentino, o lobisomem
abocanhou a cabeça de Miranda. Seus dentes perfuraram o rosto e o crânio da
mulher. Ela ainda estava consciente quando os ossos do crânio começaram a ceder
e a estalar sob a força descomunal das mandíbulas do lupino. Duque ouviu o
grito abafado e breve da mulher, que mal começou e já findou, e se jogou contra
a criatura para tentar afastá-la de Miranda. No entanto, o lobisomem era grande
demais e sequer se moveu com os empurrões.
O sangue escorreu pelos dentes e pela boca do
lobisomem, e caiu sobre o chão de alvenaria, misturando-se com a poeira até formar
uma substância lamosa. Duque socou a criatura com toda a força que tinha, mas
ela não lhe dava atenção. Após um estalo de consciência, estendeu a mão para a
faca que Miranda usara contra o lupino, e a arrancou. Desferiu dois golpes no
peito da criatura, e ela largou Miranda imediatamente, deixando seu corpo
inerte cair sobre a substância pastosa que se formara.
Duque saltou para trás, mas o lobisomem o
agarrou com as patas anteriores e o puxou em sua direção. Estava cara a cara
com a criatura, tanto que conseguia sentir o bafo quente em seu rosto. Mais uma
vez naquela noite teve a certeza de que sua cabeça estaria estraçalhada em
segundos. Apertou os olhos e, antes de sentir os dentes lhe rasgarem a pele,
dois tiros ecoaram na casa.
A criatura o largou no chão e tombou sem vida
para o lado.
Juntou a coragem que lhe restava e se pôs de
pé. Suas pernas tremiam de medo e demorou alguns segundos para que ele
conseguisse se mover. Milton estava na entrada da cozinha, o revólver apontado na
direção do lobisomem morto.
- Temos que sair daqui. Agora.
Os dois foram até o quarto onde teriam dormido
aquela noite e recolheram seus pertences com rapidez. Jogaram tudo o que viram
na mochila, Duque pegou seu facão e o prendeu no jeans, e voltaram para a cozinha. Duque se ajoelhou ao lado de
Miranda – forçou os olhos até que pode observar o rosto irreconhecível, com
vários buracos que atravessavam a cabeça amassada.
- Si-sinto muito. Espero que tu estejas num
lugar melhor agora, junto com a tua família... – toda morte que presenciava lhe
causava o mesmo incômodo, a mesma ânsia de sumir; mesmo já tendo visto dezenas
de corpos, não ficava mais fácil para Duque aceitar o que acontecia ao mundo.
Enquanto Duque estava ajoelhado, despedindo-se,
Milton reuniu em uma panela restos da janta e verduras que encontrou na
cozinha. Empurrou a panela na mochila e, quando estava a fechando, um uivo atravessou
a floresta. Duque se levantou e os dois saíram da casa.
Atravessaram o quintal de Miranda e entraram na
mata. Milton seguia Duque, que estava alguns metros à frente. Milton não tinha
noção do que iam fazer, mas sabia que não podiam parar de fugir; Duque, por
outro lado, sabia exatamente o que fazer. Os lupinos conseguiam rastrear
facilmente através do cheiro deles e certamente já estavam em seu rastro.
Tinham que desaparecer.
A mata estava densa e eles avançavam lentamente.
Com uma lanterna, Milton iluminava o caminho de Duque, enquanto este ia
cortando os cipós e galhos que fechavam a passagem. A cada golpe, galhos caíam
e folhas farfalhavam, invadindo o silêncio sepulcral da floresta. Não tinham
como ir com mais velocidade, nem com menos barulho, e isso os deixava mais
afoitos.
O outro lobisomem uivou mais uma vez.
- Ele tá chegando.
Cinco minutos se passaram e eles haviam andado
pouco mais que 150 metros. Ainda estavam muito próximos da casa. Duque
continuava a abrir caminho. Seu olhar exalava um misto de medo e obsessão.
Ignorava completamente as gotas de suor que escorriam pelo seu rosto e
continuava a cortar os galhos e folhas à frente. Estava tão absorto na tarefa,
que nem ouviu a movimentação acima.
Com a mão direita, Milton levantou a arma em
direção à copa das árvores e atirou. Uma, duas, três vezes, até que as balas
acabaram e o gatilho clicou. As folhas acima de Milton farfalharam e ele ouviu
um impacto atingir o chão atrás de si. Virou-se e viu a imensa lobanil, ainda
maior do que o lobisomem que invadira a casa.
Ela se pôs nas quatro patas e, ainda assim, o
encarava olhos nos olhos. Milton andava de costas, seguindo o barulho do facão que
ressoava. Ela avançava lentamente em sua direção, deliciando-se com o terror que
causava na sua presa. Milton tentou levantar o revólver, mas ela lhe deu uma
patada na mão, desarmando-o e abrindo dois talhos no dorso de sua mão.
Continuou andando para trás, mas,
estranhamente, parou de ouvir o barulho de Duque cortando os galhos. Por um
instante, pensou que Duque tinha lhe deixado ali para servir de isca e ter mais
tempo para fugir. Nem bem esse pensamento lhe assaltou, sentiu um puxão no
braço.
- Respira! – Duque gritou.
A lobanil saltou sobre os dois, mas não
conseguiu lhes alcançar a tempo. Eles tinham caído no rio e sumido na
correnteza.